EPICHURUS

Natação e cia.

Goldenstein: 22.90

Amigo leitor velocista, imagine que seu treinador fale assim para você:

Pode sair da piscina, tem um tiro de 50m Livre de cima agora, sem baliza, e de sunga.

Você vai contrariado, afinal, de sunga e SEM BALIZA?

Pois há mais de trinta e seis anos atrás, no mês de janeiro de 1983, o engenheiro fiscalizador de obras então com 26 anos, Marcos Goldenstein, “treinando de noite quando dá” nadou de sunga e saindo do chão nas eliminatórias do Troféu Brasil de natação realizado no Parque Aquático Julio de Lamare e fez o inacreditável tempo de 22.90.

Para você, amigo leitor, fazer uma ideia do quanto esse tempo foi fora do comum, esse Recorde Brasileiro só foi batido em Agosto de 1991 pelo tetra-medalhista olímpico Gustavo Borges, no PAN de Havana, competição em que Gustavo Borges já era O Gustavo Borges. E foi preciso um nadador do quilate de Borges voando no PAN, polido e raspado e com sunga de papel, para bater o tempo de dez anos antes do Goldenstein sem baliza. E por apenas oito centésimos.

A prova de 50m Livre, ou CINQUENTINHA, como era pejorativamente chamada na época, ainda não era olímpica e não tinha sido disputada no Mundial de Guayaquil (1982), nem seria disputada nos Jogos de Los Angeles (1984). Posteriormente a FINA e o COI a incluíram no programa, e a partir do Mundial de Madrid (1986) e Jogos Olímpicos de Seul (1988) a prova passou a existir olimpicamente.

Mas voltemos a janeiro de 1983. Aquele TB foi a segunda vez em que se disputou a prova de 50m Livre. Mas por que a saída do chão? Ocorre que não tinha baliza dos dois lados, e também só tinha placa de chegada eletrônica na mesma borda da baliza. Então a opção era ou por sair do chão e chegar no placar, ou sair da baliza e fazer cronometragem manual do outro lado. Outro fator era que se saísse do chão, a saída seria no tiro + pêra, pois não havia cabo para dar a saída automática. E a opção da arbitragem foi por chão+pêra+placar.

E no dia 28 daquele mês, como dissemos, Goldenstein nadou nas eliminatórias pela manhã para os tais 22.90, deixando o público boquiaberto, eu inclusive. Ele já tinha ganho essa prova no ano anterior (no TB do Ibirapuera) com 23.34 (também do chão), que já era bem acima da média, mas ninguém esperava um tempo abaixo de 23s. Na final, ele ganhou a prova com 23.40, meio segundo pior que de manhã, mas ainda assim mais de meio segundo na frente de Cyro Delgado, prata na prova, que fez 23.93.

MG_01

Transcrevo o comentário do Guilherme de Lamare na Aquática de Fevereiro de 1983: “no segundo dia de competição, nas eliminatórias pela manhã Marcos Goldenstein surpreendeu todo mundo com seu resultado nos 50 metros nado livre que, além de ser o novo recorde de Troféu e Brasileiro, é também uma das seis melhores marcas do mundo nessa prova: 22.90.”

Conforme dito acima, essa prova não foi disputada nos Jogos Olímpicos de Los Angeles de 1984, mas no Mundial de Madrid (1986), três anos após o 22.90 de Goldenstein, o resultado dos 50m Livre no Mundial foi: Tom Jager em primeiro com 22.49, o suíço Dano Halsall em Segundo (22.80) e Matt Biondi (22.85). E é claro que no Mundial TINHA BALIZA de saída…

Goldenstein não treinava “como um nadador” desde meados da década de 70, quando ele decidiu mudar para o Polo Aquático pois “tiraram o 4×100 da olimpíada, me desestimulando a continuar”. E  quando a CBN decidiu incluir a prova de 50m Livre no programa do Troféu Brasil em 82, nem Polo Aquático ele jogava mais. Porém o pessoal do Flamengo que SABIA da velocidade dele pediu para ele nadar apenas essa prova para ajudar o clube na contagem de pontos. Marcos, que já estava formado e trabalhando, passava no clube de noite para dar uma nadada, quando dava. E na primeira vez que nadou essa prova deu certo, medalha de ouro. Na segunda, ouro. E foi assim que ele perpetrou uma sequência de SETE Troféus Brasil, com um total de 4 ouros e uma prata. E nesse ínterim, saiu em 1983 o tempo inacreditável de 22.90, que mostrava todo o potencial do nadador.

Confiram na galeria abaixo a sequência das participações de Goldenstein de 1982 até 1988.

 

 

Resumo:

1982 Ibirapuera: 23.34 ouro

1983 Julio de Lamare: 23.40 ouro (22.90 de manhã)

1984 Julio de Lamare: 23.25 ouro

1985 Círculo Militar de Campinas: 24.11 prata

1986 Julio de Lamare: 23.45 ouro

1987 Minas Tenis Clube: 24.58 quinto

1988 Golfinho: 24.97 quinto

E a partir de 1989 Marcos já não aparece nos resultados do TB, ou seja, pendurou a sunga com 32 anos. Na década de 80, ser competitivo nessa idade era inédito.

goldenstein_1984

O pódio de 1984: Goldenstein ouro, Eduardo Macedo de Oliveira (MTC) prata e Ronald Menezes (CRF) bronze. Na foto ainda dá para ver o sexto colocado, Alexandre Reis Neto (FFC) e Ricardo Bianco (ECP), que foi sétimo. (Foto tirada do facebook do medalhista de prata, Oliveira)

Um fato curioso é que o tempo de 22.90 foi considerado recorde brasileiro pela CBN, mas nunca foi homologado pela CONSANAT como recorde sul americano. Certa vez perguntei ao Alberto Klar a razão disso, e Klar me disse “não homologou pois a saída foi na pêra”. Seja por causa da pêra ou outra razão da Consanat, o fato é que nas tabelas de recorde da época, o RB era melhor que o RS, e que apenas Gustavo Borges resolveu o “problema” em 1991, unificando os recordes brasileiro e sul americano de 50m Livre, com 22.82. E em 1992, o índice olímpico da CBDA era 23.30 (aqui).

Tudo o que vai acima são fatos. Agora permitam-me um pouco de digressão. Se com 26 anos, e praticamente sem treinar desde os 17, Marcos Goldenstein apresentou essa velocidade toda, ouso dizer que esse cidadão, com o talento que tinha, se bem treinado durante a década de 70, seria certamente um nadador de destaque mundial na prova de 100m Livre. E digo mais: se o COI tivesse colocado os 50m Livre com uma década de antecedência, Marcos teria sido medalhista olímpico.

Está claro que o SE não entra na piscina, então fiz questão de registrar aqui no Epichurus esse que é um dos feitos mais surpreendentes da natação brasileira em todos os tempos. Concorda?

Sobre rcordani

Palmeirense, geofísico, ex diretor da CBDA e nadador peba.

22 comentários em “Goldenstein: 22.90

  1. Luiz Carvalho
    1 de abril de 2019

    Eu estava la e vi tudo! O grande Marcos Goldstein foi um nadador espetacular, velocidade incrivel. Acho que ele seria top 3 no mundo se a prova estivesse no calendario de mundiais e Olimpiadas. Foi um grande marca, dessas que nao esquecemos mais. Foi muito bom ler o artigo.

    • rcordani
      1 de abril de 2019

      Isso, talvez para ele tenha sido apenas uma questão de timing, se a FINA e o COI tivessem incluído a prova antes…

      • Luiz Carvalho
        2 de abril de 2019

        Com relacao a polemica do resultado….nao houve polemica. Todos os que estavam la podem atestar que nao houve nada de errado. Foi simplesmente um incrivel resultado.

    • RICARDO ANDRÉ DO AMARAL LEITE
      2 de abril de 2019

      Como não concordar??

  2. Carlos
    1 de abril de 2019

    Fantástico!

  3. Paulo Battisti
    1 de abril de 2019

    Recordar é viver.. Rsrsrs fui 5° em 84 . Com 18 aninhos…kkkk

  4. Rodrigo M. Munhoz
    1 de abril de 2019

    Surpreendente, sem duvida! E acredito que tenha sido meio polêmico também, ao menos nos bastidores… não a hegemonia do Goldenstein na prova – nunca contestada que me lembre, mas o tempo em si. Me lembro de ouvir (ainda por anos depois) falarem dessa prova. Alguns defendendo a velô do recordista, outros falando de coisas como “falha de equipamento” , “erro humano”, etc.
    Mas deve ter sido legal pacas de tomar o “susto” com o tempo no placar! Imagino a galera presente na eliminatória em uníssono “ohhhh”, como era de praxe no JDL…

    • rcordani
      1 de abril de 2019

      De facto Munhoz, aqui e ali no whatsapp hoje surgiu essa questão de bastidores, MAS sinceramente eu não lembro de polêmicas nesse caso. A única coisa foi o lance da pêra, mas ele nadou rápido, rápido mesmo. Não lembro de bastidores no caso, diferentemente do caso Zé Geraldo 1988, aí sim teve polêmica.

      E sim, isso sim: teve o OHHHHHH da galera, ah se teve!

  5. LUIZ CARLOS PESSOA NERY
    1 de abril de 2019

    Muito show esse post Renato. Merecida homenagem

    Eu tb vi esse monstro nas piscina e ficava impressionado com a velocidade dele

  6. Mário Sérgio
    1 de abril de 2019

    Eu estava lá e ele
    Respirou 1 x só …foi incrível ! Um monstro !

  7. Fernando Cunha Magalhães
    5 de abril de 2019

    Vi Goldenstein em ação pela primeira vez no Finkel de 83 no Curitibano, onde venceu com recorde de campeonato – 23s83.

    Eu olhava aquele 22s90 nos programas de prova e achava coisa de outro mundo.

    Tinha/tenho uma admiração muito grande por ele.

    No meu primeiro TB em 86 no Julio Delamare, vi ele vencer com grande autoridade.

    E no ano seguinte, sentia-me honrado em ter me classificado para nadar uma final com ele. Sonhava com uma medalha, nem cogitava a hipótese dele não vencer a prova e quem venceu fui eu. Foi uma grande surpresa e me senti um pouco estranho, parecia que aquele não era o meu lugar. Quando ouvi o resultado oficial – lamentei que ele não estivesse entre os 3 primeiros – de qualquer forma, todos os 8 finalistas iam ao pódio no TB de Minas e ele estaria na foto. Infelizmente, com o 5o lugar, enviou André Pelá como seu representante para receber o diploma.

    Isso é uma pequena passagem da história em que tive meu dia de glória, mas o grande herói da história dos 50tinha é ele. Atleta extraordinário, que infelizmente, teve seu auge na época em a prova não estava no calendário olímpico.

    • rcordani
      6 de abril de 2019

      Boa Esmaga!

      Ótimo ter ganho aquele TB de 1987 com a presença do mestre, uma pena que ele não foi ao pódio, espero que a ausência dele no pódio tenha tido uma boa razão. Você tem a foto desse pódio?

      Em 1989, quando você ganhou de novo, ele já não estava. Mas ali você já era favorito, correto? Aliás, nós estamos no aguardo da continuidade da sua saga, assim que for possível a retome, talquei?

  8. Lelo Menezes
    6 de abril de 2019

    Eu não lembro da pessoa Goldenstein, mas os 22’90 foram quase um mito na década de 80. Pena um cara com esse talento não ter história no 100m Livre!

    • rcordani
      6 de abril de 2019

      Em 1983 ele integrou o 4×100 do CRF que bateu no TB o RS. Mas de facto, provavelmente faltou “trabalho” para essa prova, e que um cara de 22.90 ficou longe de alcançar o potencial.

  9. Jorge Jinro Nishiyama
    28 de junho de 2019

    Vi ele nadar algumas vezes, e largava mal e tinha péssima virada. Na velocidade era incrível

  10. Alberto Klar
    25 de março de 2021

    Eu estava lá neste dia.
    Foi o maior velocista que conheci em toda a minha carreira
    Sem bloco de partida
    Sem materiais tecnológicos
    Apenas ele e suas habilidades
    Poucas pessoas vão entender o que foi este feito
    Imaginem este tempo há 38 anos atrás!!!!!!!
    Leiam de novo as condições em que ele fez
    Incrível
    AKlar

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