Ondrej Bures nasceu em Praga, na antiga Tchecoslováquia em 24 de Setembro de 1968. A mãe Alena teve dificuldades no parto e o menino nasceu com paralisia facial, que futuramente lhe trouxe problemas de dicção. A família era muito pobre e a solução dos pais foi botar o menino pra nadar, pois além de recomendação médica, era uma das poucas chances de uma vida melhor pra família, dado o incentivo comunista ao esporte.
Ondrej se destacou desde cedo na natação e com 18 anos foi finalista do Campeonato Europeu nos 200m Borboleta, 400m Medley e 1500m Livre. Com esses resultados, foi incluído no programa olímpico tcheco e passou a ter algumas mordomias. Passava a semana no centro olímpico com acompanhamento de profissionais gabaritados e alimentação balanceada. Só voltava pra casa nos finais de semana.
Em 1987 Ondrej já tinha tempos de respeito, como 15’19 no 1.500m Livre e 4’24 nos 400m Medley (ambos em piscina longa), mas foi nos 200m Borboleta, sua principal prova, que o seu 2’00 lhe rendia sonhos de uma final olímpica.
Infelizmente foi também nesse ano de 1987 que a Tchecoslováquia começou a sofrer as pressões de uma abertura política que iniciaram na Rússia de Gorbachev e culminaram, anos depois, com a separação da Tchecoslováquia em dois estados independentes: A República Tcheca e a Eslováquia. Para Ondrej foi o início do fim do sonho olímpico.
As pressões políticas acabaram cancelando o programa olímpico da natação. Os profissionais, inclusive o técnico, foram todas dispensados e o pior de tudo, fecharam a piscina olímpica onde ele treinava.
Sem apoio do governo, sem piscina e sem treinador, Ondrej foi obrigado a treinar numa piscina de 20m, aquecida hora sim, hora não. As condições de treinamento eram bem precárias e assim treinou ate os jogos olímpicos de 1988.
Ondrej chegou em Seoul sem esperanças de bons resultados, mas sonhava com um milagre (que não veio). Decidiu abandonar os 1500m (tinha certeza que não iria bem graças a má preparação). Nadou os 400m Medley para um fraco 4’29. Terminou em 19º. Nadou os 200m Borboleta pra 2’02 terminando em 22º. Anos depois me disse que aquele instante, ainda na água, olhando os 2’02 no placar eletrônico, foi o pior momento de sua vida.
O péssimo resultado em Seoul foi um divisor de águas na vida dele. Pegou ódio mortal do seu país e em 1989 conseguiu, depois de muito esforço, se transferir para os Estados Unidos para treinar com o Maglischo. Nunca mais voltou para a Tchecoslováquia.
Cheguei na piscina da CSUB (California State University, Bakersfield) pela primeira vez em Julho de 1990. As aulas começavam somente em Setembro e a universidade parecia deserta. Era por volta das 8 da manhã e a piscina estava vazia, com exceção do salva-vidas que lia um livro, sentado naquelas altas cadeiras de madeira. Nadei uns 3.000 e saí da água. O salva-vidas veio falar comigo. Era Ondrej! Percebeu que eu era nadador e veio me dar as boas-vindas. Para poder se sustentar Ondrej era salva-vidas e também o responsável pela manutenção da piscina, tirava e colocava as lonas, garantia que o “balde” de Gatorade estava cheio, escrevia a temperatura da piscina no quadro negro e outras coisinhas mais. Foi o primeiro nadador que conheci em Bakersfield e consequentemente meu primeiro amigo nas terras do Tio Sam. Fomos vizinhos por dois anos e não consigo botar no papel a quantidade de vezes que quase chorei de rir com ele. Era um sujeito peculiar. Falava com a boca torta, tipo Sylvester Stallone e gostava de beber, ahhh, como gostava de beber. Era impressionante! Tomávamos um porre no sábado à noite e enquanto eu acordava no Domingo com aquela ressaca monstro, ele aparecia na varanda com uma cerveja na mão. Esse era o seu lado “B”. Gostava de falar tcheco quando estava bêbado e invariavelmente eu fingia que entendia, balançando a cabeça, pra depois de meia hora ele se dar conta e cair na gargalhada. Nunca o vi de mau humor, bravo, resmungando! Amava os Estados Unidos e toda aquela cultura! Acho que passou por tantas dificuldades na infância e adolescência que realmente não tinha do que reclamar.
A foto ta ruim, mas sou eu com ressaca ao lado do Ondrej já bebendo cerveja, num domingo de manha. Ao fundo Artur Albiero!
Eu gostava de treinar forte, mas não me considero como um dos maiores “leões de treino” que conheci. No Brasil o maior pra mim foi o (Marcelo) Grangeiro, um monstro no treino (e na competição também), mas posso mencionar o Paulinho Torres que não tinha tempo ruim ou água fria que o detivesse e o Renato Cordani, com quem treinei por pouco tempo, mas me impressionou a seriedade com que encarava os treinamentos. E como esquecer da Ciça (Maria Cecilia Giacaglia) que treinava com tal intensidade que só marmanjos de nível de campeão brasileiro conseguiam acompanhar seu ritmo de treino. No entanto, ninguém me impressionou mais na vida do que Ondrej. Foi o único companheiro de treino em toda minha carreira (e olha que treinei com muitos feras) que eu não conseguia acompanhar, em nenhuma série, nem de perto. Me lembro de um 3×800. Eu fiz de crawl e ele de borboleta. Nadou do meu lado. Eu abria nas viradas e ele me pegava no nado e olha que eu forcei ao máximo, por vergonha mesmo de empatar com ele e não consegui abrir um metro sequer, em nenhum dos três tiros.
Ondrej venceu o NCAA Div II 11 vezes. O maior vencedor da história de Bakersfield. Em 1993 se aposentou e quando o Maglischo me convidou para ir para o Arizona nesse mesmo ano, Ondrej foi junto como auxiliar técnico dele. Maglischo amava o Ondrej. Era praticamente um filho pra ele.
Em meados de 1995 eu parei de nadar com o Maglischo e passei a ver o Ondrej com menos frequência, embora ainda saíssemos pra tomar uma cervejinha de vez em quando. Em 1996 ele conseguiu emprego como head coach de uma equipe em Santa Monica e se mudou de volta pra Califórnia. Fizemos uma despedida num boteco qualquer da Mill Avenue em Tempe. Ele estava bem feliz com a oportunidade. Foi a última vez que o vi.
Em Junho de 1999 enquanto eu morava em Toronto, no Canadá e já aposentado das piscinas, recebi uma ligação do Justin Slade, um sul-africano que nadou conosco tanto na Califórnia, quanto no Arizona, me dando a terrível notícia que Ondrej havia falecido… atropelado por um ônibus na esquina da charmosa Santa Monica Boulevard com a Sepulveda. Morreu na hora!
A trágica morte da campeã olímpica Camille Muffat nessa semana me fez lembrar do Ondrej, que diferente da francesa, não deve ter sido homenageado em nenhuma capa de revista, semi PEBA que foi, embora bem melhor que esse PEBA que vos escreve. Fica aqui minha homenagem a ele, um dos melhores nadadores que tive o prazer de treinar ao lado e com certeza o mais dedicado. Que continue R.I.P.
Muito legal a história, Lelo. O cidadão melhorou esses tempos de longa (15:19, 4:24 e 2:00) ou parou por aí? Ele tentou ir para Barcelona?
Quanto à citação da minha pessoa, informo que frequentemente o sr. ficava para trás nas séries!
O cidadão cortou relações com a Tchecoslováquia e portanto nunca mais nadou pela seleção e consequentemente não nadou em Barcelona. Acho inclusive que depois que foi para os Estados Unidos ele nunca mais nadou em longa portanto esses tempos aí de 1987 são os melhores da vida dele. Não posso garantir mas tenho quase certeza disso!
Quanto aos treinamentos o senhor era de fato muito esforçado e em várias séries conseguiu me acompanhar de perto, tipo uns 3-4 metros atrás…
Boa. Emocionante texto, Lelo. Eu também fui salva vidas enquanto nadava nos EUA, ganhei uma apreciação pela cultura americana e me identifiquei com o Ondrej de uma certa maneira. Na época que nadávamos juntos, me lembro de vc falar desse cara algumas vezes e achei a homenagem muito boa. Lembro também quando vc contou que ele tinha morrido… 30 anos de idade me parece cedo demais, mas me parece que ele levou uma vida boa. E nem era tão PEBA assim, afinal foi para uma Olimpiada e não fez feio, apesar de não chegar em finais. E aparentemente deixou boas memórias com os amigos.
Achei engraçado o seu uso de “infelizmente” com relação a abertura política/democrática e consequente saída do Leste Europeu do jugo soviético. Mas entendi seu ponto. No fim das contas, o “presente” de uns pode ser a “ruína” de outros.
Na semana passada, a morte da Camille Muffat também me fez pensar. Apesar de clichê, acredito que esses fatos cruéis nos fazem lembrar que a vida é curta. O Epicuro lembrava disso todo dia, na hora do almoço com os amigos.
Abraços!
Pois é Munhoz! Eu não mencionei no texto, mas esse ano outro nadador de Bakersfield morreu, o Brian Cutil. Era salva-vidas em LA e morreu durante uma prova de natação: Ataque cardíaco as 42 anos de idade. A vida é muito curta mesmo!
Quanto a abertura política, infelizmente pra ele, já pro resto do mundo, por motivos óbvios, foi ótimo.
Excelente texto, Lelo. Nao sei se te contei mas, na minha breve aventura de um ano pela natacao americana na Dakota, o Ondrej foi citado algumas vezes. Treinei com o Ron Alen, ex-assistente do Maglisho. Decidi investir tudo no borboleta antes de parar de nadar (o combinado com meu pai era o de que eu iria um ano para os EUA, tentaria chegar ao meu limite e voltaria ao Brasil para começar a trabalhar). Comecei a nadar bastante borboleta em todos os treinos. Um dia teve um 16×200 que eu resolvi fazer de borbo. O Ron perguntou: are you sure? Eu disse que sim e fiz. Foi foooooda, mas eu estava com um preparo excelente na epoca e fiz. Ao final o Ron chegou na borda e falou: “Ondrej would be proud of you!”. Nunca mais esqueci. Fica aqui minha homenagem a ele, que de certa forma virou um ícone pra mim por influencias dos comentarios do Ron e, mais tarde, seus.
Boa Guila! Eu não sabia desses detalhes não. O Ron ficou bastante tempo lá em Bakersfield. Cara gente boa! O Ondrej era realmente impressionante nos treinos. O cara fazia séries longas de borboleta acompanhando os fundista de crawl. Coisa de louco!
Lelo, muito bacana.
Nunca ouvi falar no Ondrej.
Embora eu não beba, tenho certeza que me daria bem com o rapaz.
Morreu com a mesma idade da minha irmã. De fato, muito jovem, como disse o Munhoz.
Que bela homenagem.
Valeu Esmaga. Eu não sabia que você tinha perdido uma irmã tão cedo! Que barra hein! Perdi minha mãe com 52 e já acho cedo demais!
Quanto ao Ondrej, tenho certeza que você se daria bem com ele. O cara adorava contar histórias de natação. Algo bem em comum entre vocês.
Abs
Lelo, história sensacional.
Valeu Coach!
Abs
Lindo texto! Bem escrito factualmente e cheio de emoção, como devem ser os bons textos. Parabéns, também refleti muito sobre a brevidade da vida com ele. Abs
Obrigado Adriana
Abs