EPICHURUS

Natação e cia.

O Dia Que Quase Virei Casaca…

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Premiação dos 100m peito publicado no jornal El Mundo de El Salvador.

Impressionante a unanimidade no assunto.  Quando você pergunta pra algum veterano do que eles mais sentem falta da época de nadador, praticamente 100% respondem “das histórias!” Lógico que as medalhas, as conquistas e os títulos darão orgulho eternamente, mas quando bate a saudade, e para quem ainda nada competitivamente eu garanto que quando pararem a saudade baterá com certa frequência, não são os pódios, os treinos, os recordes ou as premiações que vem a mente, mas sempre as histórias vividas fora d’água.  Algumas são curtas, nada mais que um parágrafo, como a vez que nos passamos por taxistas do hotel Guanabara no Rio de Janeiro e pregamos uma peça sensacional no borboletista Edmilson Dezordo, atual secretário de esportes de Ribeirão Preto, ou quando nos perdemos nos Lençóis Maranhenses por dez horas e o medo de morrer ali no meio do nada foi bem real.  Outras serão difíceis de escrever, principalmente dando “nome aos bois” como a história da bexiga congelada atirada em Santos, os inúmeros trotes, as bagunças em Jericoacoara, as peripécias do Repolho no Sul-americano juvenil de Rosário em 1989, as apostas de quem ficaria com Brigitte Becue no Mundial de 1993 em Palma de Majorca e outras tantas mais.  Já outras renderiam excelentes histórias aqui no Epichurus como a Guerra de Farinha em Rosário no Sul-americano Absoluto de 1990, ou o “acidente” de mobilete em Punta del Leste no Sul-americano Absoluto de 1994.  Espero poder escrever sobre elas em breve.  Enfim, o que não falta é história.

Decidi começar com uma que pouca gente conhece.  Após 1990 quando a sensacional história da Guerra de Farinha na Argentina ainda era assunto e foi por muito tempo, eu passei dois anos muito focados em treinamento e pouca coisa inusitada aconteceu.  Já o ano de 1993, quando quase virei casaca, foi diferente.  Depois do fiasco da seletiva olímpica de 1992, passei a encarar a natação de outra forma.  Continuava dedicado e treinando forte, mas passei a dar mais atenção às atividades “extracurriculares” como baladas, bagunças, viagens e afins.  E a história que vou contar agora foi o inicio de uma série que daria um bom livro de contos e que aos poucos pretendo dividir aqui…

Meu técnico nos States, Ernest Maglischo, recebeu o convite para montar uma mini seleção americana e participar do Campeonato da América Central de 1993. O convite veio de Rick Graves, ex-nadador do Ernie que estava passando uma temporada como técnico da equipe nacional de El Salvador. A USA Swimming (equivalente a nossa CBDA) politicamente aceitou o convite e como Graves foi atleta do Maglischo, nada mais natural do que convidá-lo para o papel de head coach.  No entanto se esqueceram de analisar um importante detalhe: A competição seria em San Salvador, capital de El Salvador, pais que acabara de sair de uma longa guerra civil que resultou na morte de mais de 80 mil pessoas.  O país, agora controlado pelos militares, ainda estava em estado máximo de alerta.

Maglischo ficou lisonjeado pelo convite e levou a sério a convocação.  Como deram carta branca pra ele escolher a equipe, passou a ligar para alguns grandes nomes da natação americana.  Todos declinaram o convite.  Alguns foram mais polidos e deram como desculpa a dificuldade de sair do país num momento delicado já que treinavam com foco no NCAA ou outra competição importante.  Outros, mais sinceros, falaram na lata “El Salvador? Are you nuts!  No way!”  O pepino foi crescendo nas mãos do Maglischo.  Obstinado em montar a equipe e sabendo do fraco índice técnico da competição, o velho treinador teve uma brilhante ideia…

“Marcelo, o que acha de nadar as provas de peito no campeonato da América Central pelos Estados Unidos?” Aceitei na hora!  Físico de formação e obcecado por números, Maglischo montou a menor equipe possível usando só atletas sob sua tutela, mas que fosse capaz de trazer o Troféu de campeão para os Estados Unidos.  Além de mim, José Rodrigo Messias e Arthur Albiero completavam o quadro de brasileiros, mas tinha suecos, sul-africanos e tchecos.  Americanos mesmo eram poucos!  E pra El Salvador nós fomos!

Ao chegar no aeroporto fomos recepcionados por um motorista americano, um dos sujeitos mais estranhos que eu conheci, com uns três ou quatro tiques nervosos, natural da Flórida, que ao se formar na universidade, comprou uma Kombi velha e partiu da Flórida para a Califórnia em seu estiloso veículo.  Não satisfeito decidiu dirigir até a América do Sul, mas seu dinheiro acabou enquanto cruzava El Salvador e lá acabou ficando ao conseguir emprego como porteiro de um clube.  A Kombi tinha como assento aquelas cadeiras brancas de plástico que agente encontra nos botecos da vida.  Detalhe: As cadeiras eram soltas e qualquer curva éramos todos arremessados pra um lado ou pro outro da maravilhosa perua.

A cidade mostrava claros sinais da guerra civil: prédios destruídos, ruas interditadas, militares armados em toda esquina e logo na primeira parada, num posto de gasolina, uma menina teve a câmera confiscada pelos milicos ao tentar tirar fotos da sensacional Kombi.  A partir de então ficamos mais espertos com as câmeras.  Já o “hotel” não era bem hotel, mas sim um casarão enorme e antigo.  Foi disponibilizado exclusivamente para a “seleção” americana.  Na casa algumas empregadas, todas senhoras de idade muito simpáticas, ficavam a nossa disposição 24×7.  Num certo dia pedi um misto quente às três da manhã e fui atendido prontamente!

A competição começou sem maiores percalços.  A piscina era até bem bonita (descobri que natação é o esporte de rico de El Salvador) e a arquibancada estava lotada.  A criançada pedindo autografo, principalmente para nós, os “americanos”.  Fizemos amizade com os locais da seleção de El Salvador, comandados pelo Rick.  Os garotos pareciam esclarecidos, alguns estudavam inclusive nos Estados Unidos.  Um deles nos levou até seu carro blindado pra mostrar uma semiautomática que levava no porta-luvas.  Recomendação do pai que segundo o menino tinha matado uns terroristas no telhado de casa alguns meses antes. Essa era a realidade do país.

A premiação vinha com o hino nacional e no primeiro dia, por coincidência, somente os verdadeiros americanos levaram ouro.   Foi um festival de Star Spangled-Banner.  Nas finais do segundo dia venci os 100m peito e foi ali que caiu a ficha.  Teria eu que virar casaca e ouvir o hino americano com mão no peito e bandeira nas costas?  Comecei a pensar em saídas e decidi dar uma passadinha na mesa de controle, como quem não quer nada.  Ali estavam dois garotos e um senhor de idade.  Na maior cara de pau do mundo cheguei para um dos garotos e falei “Vocês tem o hino brasileiro aí?” Com cara de espanto um deles respondeu “Si, creo que si!” “E a bandeira?” Aí a cara dos dois foi de perplexidade.  Teria que me explicar melhor!  “Sabe o que é! Sou brasileiro naturalizado americano, mas gostaria muito de ouvir o hino do Brasil e ter a bandeira brasileira hasteada. Significaria muito para os meus pais!” O apelo deu resultado porque começaram a discutir entre eles e em poucos segundos um deles partiu em disparada.  O outro disse que achava que tinha umas bandeiras no ginásio e que iam verificar.  Expliquei que eu tinha ganhado os 100m peito e que me sentiria lisonjeado se conseguisse atender o meu pedido.  Sai dali sem saber o que aconteceria e sem muitas esperanças.  Me conscientizei que provavelmente ouviria o hino americano – História pra contar pros netos, pensei!

Cerca de 15 minutos depois fui chamado para a premiação e já a caminho do pódio vi que preparavam a bandeira brasileira.  Sorri por dentro!  A cerimonia com direito ao hino brasileiro foi rápida e aparentemente passou despercebida pelo publico e oficiais da competição.  Ninguém veio me falar nada!  Nenhum questionamento!  Os outros estrangeiros entraram na onda e fizeram também os seus pedidos.  Era bandeira da África do Sul, República Tcheca, Suécia, e juntamente com as das “potencias” locais Guatemala, Nicarágua, Honduras e El Salvador, passaram a dar à competição um ar bem mais internacional.

Eu não me lembro dos meus tempos, nem mesmo como fui nos 200m peito, mas a viagem a El Salvador foi inesquecível.  Graças a Rick Graves, que foi um guia incansável e ao nosso estranho piloto da Kombi, cujo nome não me recordo mais, conseguimos conhecer bastante daquele país.

Nos empanturramos de pupusas, famosa iguaria local, enchemos a lata de Rialto, cerveja salvadorenha, fomos a um show do Rush cover (quem imaginaria que existe uma banda Rush cover em San Salvador), e conhecemos lindas praias desertas, parques muito bonitos e o transito mais caótico que eu já vi. Foi uma experiência única.  Difícil imaginar que na vida eu retorne a El Salvador, assim como é difícil encontrar alguém que pra lá já tenha ido.

Ouvi dizer que o Maglischo não gostou muito da nossa malandragem embora ele nunca tenha mencionado abertamente pra mim.  No fundo pouco me importa!  É raríssima a oportunidade de ouvir o hino brasileiro só pra você!  É uma das experiências mais sensacionais que já vivi.  Na época não sabia, mas o ouviria somente mais uma única vez na carreira em provas individuais, no ano seguinte, no Sul-Americano de Maldonado.  Tão sensacional como isso somente poder escutar o famoso jargão “Podemos preanunciar…” do grande Mario Xavier, mas isso fica pra outra historia!  Quem viveu, viveu…

10 comentários em “O Dia Que Quase Virei Casaca…

  1. rcordani
    16 de julho de 2012

    Boa história Lelo. Essa foto aí é da ocasião?

    Realmente o “podemos pré-anunciar” era sensacional. Ouvi-o em meu nome apenas uma vez (RP dos 200B no paulista inverno 1987 no Internacional de Santos), e ainda na série seguinte bateram o RP que eu acabara de bater. De qualquer forma, sensacional. O maior “pré anunciar” que eu já ouvi na água foi quando o JR meteu 2’00” de medley no Finkel de 1990, causando assombro. Na verdade acho que o MX começou a pré-anunciar antes mesmo de eu chegar…

    • Lelo Menezes
      17 de julho de 2012

      Sim, a foto saiu no jornal local. Comprei em El Salvador mesmo, no dia seguinte a prova! Tenho guardado aqui em casa! Quanto ao “pré-anunciar” do MX, pra mim veio uma única vez também, RB dos 200P no Finkel de 1995! O RB durou até 1999. E os 2’00 do Júnior foram sensacionais!

  2. rmmunhoz
    17 de julho de 2012

    Ótima história! Lelo e Messias são os únicos caras que já conheci que estiveram em El Salvador por vontade semi-própria!

    • Lelo Menezes
      17 de julho de 2012

      A viagem foi ótima mas deixei de fora uma parte engraçada! Tinha uma mina da “seleção” que ficava ouvindo e cantando incessantemente a música “What’s Up” do 4 Non Blondes. Peguei ódio dela e da música, a qual não consigo ouvir até hoje!

  3. Marina Cordani
    17 de julho de 2012

    Gostei muito do texto e da história! MX era demais, mas vamos combinar: o jeito que ele falava, pré-anunciar é esquisito… o cara anunciava, né?

    • Lelo Menezes
      17 de julho de 2012

      Boa Marina! Acho que o pré-anunciar vem de uma época com cronometragem manual e o MX anunciava o recorde antes de ter o resultado oficial em mãos! Só pode ser isso!

  4. Fernando Magalhães
    19 de julho de 2012

    Show essa história Lelo. Não conhecia. Abraços.

  5. Ruy
    20 de julho de 2012

    Sensacional. Mesmo conhecendo inúmeras boas histórias do Lelo, sempre tem mais uma carta na manga.

  6. Pingback: Retrospectiva de um ano de Epichurus | Epichurus

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Publicado em 16 de julho de 2012 por em "Causos" fora d'agua, Natação.
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