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Natação e cia.

O Xuxa ficou por um centésimo? (e as planilhas do Chips)

Tudo começou quando eu estava pesquisando sobre a carreira do Fernando Scherer, o Xuxa. É que estou escrevendo um livro, e como não gosto de histórias obscuras, precisava esclarecer a história exata da seletiva para Barcelona 1992, na qual ele teria ficado por um centésimo do índice olímpico. Eu já tinha lido sobre esse famoso centésimo uma porção de vezes, aqui, aqui, e até já tinha ESCRITO sobre ele (aqui).

Mas me ocorreu que naquela época (1992) sempre existia a famosa última chance no domingo, e na seletiva de 1992 no Fluminense essa última chance acabou sendo famosa por causa da história do Tetê / Cassiano nos 200m Livre (leia aqui). E se o Xuxa tinha ficado por UM CENTÉSIMO, por quê ele não teria feito essa nova tentativa? (principalmente considerando o ocorrido na seletiva anterior de Seul, por exemplo – leia aqui)

Perguntei para o Esmaga, nossa enciclopédia ambulante particular, que por acaso também tentou a vaga dos 50m Livre nessa mesma seletiva. Esmaga foi taxativo: “Cordani, na tentativa regulamentar o Xuxa realmente me abriu um corpo, mas não ficou por um centésimo não. Foi mais. Mas não lembro se ele nadou domingo…” Perguntei ao Lelo, que estava na seletiva tentando os 100m Peito (relato aqui) e ele não se lembrava de ver o Xuxa na “última tentativa”. O Julian Romero disse que não estava nessa seletiva, e que o swimitup! só começou em 1996, e que “who cares?” e que era para eu consultar o irmão dele. Rogério tampouco lembrava. Para o Munhoz, que nadou a seletiva, claro, eu nem perguntei.

Eu não queria perguntar diretamente para o Xuxa, pois ele já havia escrito sobre isso, e decidi perguntar para o seu técnico na ocasião, o prof. Carlos Camargo, o Chips, que hoje é presidente da Federação Aquática de Santa Catarina. E o Chips não só sabia de tudo, como tinha anotado à caneta, totalmente old style toda a trajetória do seu nadador desde o começo da carreira até chegar no bronze olímpico. E foram essas sensacionais planilhas escritas à mão, iguaizinhas às que o Pancho fazia para nós, que me fez escrever esse post.

Xuxa é de outubro de 1974, vamos seguindo pelas planilhas ano a ano. Os tempos em piscina longa estão assinalados em cor azul, o que significa que, salvo quadrado em caneta azul, são tempos de curta. (já chego na questão do centésimo).

1989 14-15 anos

1989

Fernando Scherer começou a nadar com 14 anos, portanto esse é seu primeiro ano como nadador. O maior feito de 1989 é ter conseguido no brasileiro do final do ano o tempo de 57.98. Está longe de ser tempo de craque, mas para quem acabou de começar é bastante promissor…

1990 15-16 anos

1990

Não nadou em longa durante o ano todo. Fechou o ano com 53.42 de 100m Livre e 23.81 em 50m Livre em curta. Comparando com os tempos do Julio de Lamare, que foi em São Paulo (e Xuxa pelo jeito não foi), o campeão dos 100 (Teófilo L. Ferreira) fez 52.72 nos 100 e o campeão dos 50m Livre (Carlos Pereira Lima Filho) fez 24.22. Xuxa ainda estava longe do topo na categoria nos 100m Livre, mas já estava pintando entre os melhores do Brasil nos 50m Livre.

1991 16-17 anos

1991

Chips considerou corretamente que janeiro de 1992 pertence à temporada de 1991. Xuxa fez 24.21 nos 50m Livre no dia 15/01/1992, e (isso não está na planilha mas o Esmaga disse que ele) ficou em quinto no Troféu Brasil que foi disputado no Minas Tenis Clube (e no qual de minha parte o improvável aconteceu).  Ele só teve um tempo marcado de 100m Livre em longa durante todo o ano de 1991 (56.87), e também nadou 100 costas no TB, fazendo 59.83.

Portanto, Xuxa entra no ano de 1992 com 24.21 como seu melhor tempo. O índice olímpico era 23.30. Ele nadou o total de UM Troféu Brasil na carreira até o momento. Apenas um lunático o colocaria como postulante às olimpíadas.

1992 17-18 anos

Mas foi o que QUASE aconteceu. Na seletiva olímpica do Fluminense, Xuxa ganhou fácil e meteu 23.45, uma melhora inacreditável, já era o segundo melhor nadador do Brasil nesta prova (atrás de Gustavo Borges), mas ainda estava a 0.15 do índice olímpico.

Provavelmente ele e seu técnico ponderaram que o tempo estava distante e não fez a última tentativa domingo 31/05, razão pela qual ninguém lembrava dela. Mas e o “um centésimo”? Reparem que em 04/06 ele nadou em curta, esse foi o Finkel de Londrina. Posteriormente no dia 10/06/1992 ele nada em Roma. Ocorre que a CBDA na ocasião resolveu dar um “prêmio de consolação” aos que não conseguiram o índice olímpico, e os levaram para duas competições na Europa. A primeira, essa de Roma, em que Xuxa meteu 23.48.

Roma_1992

Roma 1992: Daniel Sperb, Rodney Filizola, Paula Renata Aguiar, Coaracy, Edílson Silva Jr, Paoletti Filippini, Ana Catarina Azevedo, Fabíola Molina, Xuxa, Paula Marsiglia, Tulio Pierobon, Mauricio Cunha, Cassiano Leal, Leonardo Gomes (Cheiroso), Juliano, Ricardo Moita, William de Lima.

E a segunda, na Ilha de Funchal (21/06/1992) foi quando ele fez 23.31, agora sim, um tempo a UM CENTÉSIMO DO ÍNDICE OLÍMPICO.

Repare, leitor, que pela CBDA o período de obtenção de índices estava encerrado desde 31/05. Mas os Jogos Olímpicos de Barcelona começariam apenas no dia 21/07, não é impossível que as inscrições ainda estivessem abertas. E não é nada impossível que o Coaracy tenha prometido aos nadadores que caso conseguissem o índice e não tirassem nenhum classificado, poderiam ir. Isso não sabemos.

O que podemos garantir é que Xuxa então com 17 anos nadou mais de um mês antes dos Jogos Olímpicos de 1992 para um tempo que ficou a um centésimo do índice olímpico nos 50m Livre. Outra coisa que sabemos, é que em 2000 a Fabíola Molina ficou por dois centésimos e foi para Sydney. Na ocasião, Coaracy pediu “permissão” ao Scherer para levar a Fabíola, o que corrobora a suspeita que Xuxa iria caso fizesse 23.30 na Ilha de Funchal.

No final do ano de 1992, Scherer faria um excelente TB no ECP, com 22.91 nos 50m Livre e 50.43 nos 100m Livre, conforme mostram as planilhas do Chips.

cerimonia_abertura_buffalo_1993

Universíades 1993. Em pé: Xuxa, Saboia, Cheiroso, presidente da CBDU, Luiza Parente e o cara do salto em distância. Sentados: Cassiano, Hermeto e eu.

Agradeço pelas sensacionais planilhas, meu caro Chips, e pelo esclarecimento final (com provas escritas) do famoso “caso do um centésimo” do Fernando Scherer na seletiva para Barcelona. Em Atlanta 96 e Sydney 00, como todos sabem, Xuxa foi e ganhou medalha nas duas.

Mas essa é uma outra história…

Sobre rcordani

Palmeirense, geofísico, ex diretor da CBDA e nadador peba.

20 comentários em “O Xuxa ficou por um centésimo? (e as planilhas do Chips)

  1. felipecasas
    11 de março de 2019

    aeeeeeeeeeee post epichuriano!

    abraços

  2. Luiz Carvalho
    11 de março de 2019

    Que história legal!

  3. Fernando Cunha Magalhães
    11 de março de 2019

    O surgimento meteórico deste atleta EXTRAORDINÁRIO é uma das passagens mais impressionantes que acompanhei ao longo dos longos anos da minha carreira de nadador.

    Eu estava há anos no circuito.
    Nunca vi nada parecido nem antes, nem depois.

    A primeira vez que eu vi o Xuxa foi no TB do Minas em 92.
    Ainda com cabelos longos, bem entrosado com a equipe do Flamengo e fazendo tempos e participações muito boas para um estreante.

    A segunda foi na véspera da Seletiva na piscina do FFC.
    Sem brincadeira: olhei, vi e pensei… “Pô, e o Paulo Brother não quis vir” (PB colega de clube, velocista, que foi finalista dos 50m livre no TB de 89).

    Quando eu caí para a prova de 50m livre aconteceu algo que não tinha acontecido comigo no Brasil desde que eu havia começado a participar das provas de 50m em 1986. A velocidade com que ele abriu distância foi algo absurdo e quando eu bati na placa, fiquei atônito com ele e todo os que estavam no Parque Aquático olhando em direção a cabine de controle para saber o resultado oficial registrado pelo placar eletrônico.

    Assisti ao surgimento de um fenômeno da nossa natação ali ao meu lado.

    Depois daquilo, ele ainda viria a nos surpreender e alegrar muitas e muitas vezes.

    Rendo aqui, mais uma vez, minha homenagem a Fernando Scherer.
    Orgulho da natação brasileira.

    • rcordani
      12 de março de 2019

      É muito legal assistir o surgimento de um talento.

      Eu o vi pela primeira vez nos corredores do Finkel de 1992 em Londrina. Eu tinha 22 anos, era um nadador do “establishment”, várias finais A e um pódio nas costas, e a linguagem corporal do Xuxa NÃO ERA a de um iniciante, falava alto, gesticulava, aqueles cabelos compridos (iguais aos meus). Eu pensei: “quem é esse cara, e quem ele pensa que ele é?”. Não pensei isso racionalmente, mas lembro do incômodo com a diferença entre os resultados dele até então e a atitude dele.

      O tempo mostrou que o ignorante… ERA EU! hehehe.

    • rcordani
      12 de março de 2019

      Só um detalhe que esqueci de mencionar: exatamente dois anos antes, você TAMBÉM assistiu de dentro da piscina o surgimento do Gustavo Borges, no dia do quarenta e oito. Dureza…

  4. Daniel Bocaccio Sperb.
    11 de março de 2019

    Em Roma não tinha a prova de 50 metros livres. Ele fez o tempo na passagem dos 100 metros livres.

    • rcordani
      12 de março de 2019

      😱 vamos ver se Chips ou Xuxa aparecem para esclarecer essa!

  5. MARINA CORDANI
    11 de março de 2019

    Adorei as planilhas! Lembrou muito os cadernos do Pancho.

  6. Ricardo Leite
    11 de março de 2019

    A descrição faz a história ser mais sensacional a nós que gostamos de natação. Parabéns Cordani👏👏👏👏

  7. Lelo Menezes
    12 de março de 2019

    Sensacional! Eu assumi que o 1 centésimo tinha sido ainda em período oficial para índice. Boa correção da história. Coisa de um ano e meio depois disso, Xuxa já consagrado no Brasil, foi nadar o Mundial de Curta em Palma de Mallorca, Espanha. Não o considerávamos favorito a medalha. No dia do 100m Livre, descemos pra tomar café da manhã e a discussão na mesa era o favoritismo do Pirula (Gustavo Borges) que ainda não havia descido. Na mesa uns 5, 6 brazucas, incluindo Xuxa e eu. Xuxa quieto enquanto ponderávamos se Pirula levaria ouro. Tinha um sueco, um americano e um russo que podiam incomodar. Num certo momento da conversa Xuxa bate o dedo na mesa e diz que seria Campeão Mundial naquele dia. Rolou esporro forte da galera. No fim do dia calaria a todos! Em toda minha carreira de atleta, e peguei seleção brasileira com ele algumas vezes, inclusive foi meu companheiro de quarto, nunca conheci alguém com a auto confiança do Xuxa. As vezes soava prepotente e de fato era, mas no fundo acho que era essa tal auto confiança falando muito alto! Acredito piamente que o Xuxa podia ter ido mais longe, inclusive com ouro olímpico! O excesso de auto confiança as vezes faz com que você negligencie o básico do esporte. Obviamente Gustavo teve carreira mais consagrada, mas se formos discutir o intangível talento, eu sou capaz de apostar que Xuxa tinha um pouco mais!

    • rcordani
      12 de março de 2019

      O talento do Xuxa era realmente inacreditável, vide os resultados dele em 1998. Uma pena que depois de 1998 não tenha conseguido evoluir, talvez a melhor olimpíada dele teria sido a de 2000 mesmo. Mas ele teve problemas de contusões e até ortodônticos, talvez por isso não tenha desenvolvido todo o seu potencial.

      E veja, estamos falando que um cara que não teria desenvolvido todo o potencial e mesmo assim tem duas medalhas olímpicas! Um monstro.

  8. Neco Verrone
    12 de março de 2019

    Fantástico Cordani, excelente texto!!

  9. Fabiano Monegaglia Polloni
    12 de março de 2019

    Bom post, Excelente história investigativa!

  10. Pingback: Goldenstein: 22.90 | EPICHURUS

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