Em 1534, D. João III, com o objetivo de colonizar o Brasil e evitar invasões estrangeiras, cria o sistema de Capitanias hereditárias. Este sistema consistia em dividir o território brasileiro em grandes faixas e entregar a administração para particulares principalmente nobres com relações com a Coroa Portuguesa. O sistema não funcionou muito bem e foi extinto em 1759 pelo Marquês de Pombal.
O advogado Jean-Marie Faustin Godefroi Havelange ou João Havelange nasceu no Rio de Janeiro em 1918. Filho de um comerciante de armas belga, dedicou-se ao esporte desde menino. Atleta do Fluminense nadou na Olimpíada de Berlim em 1936 e jogou polo em Helsinque em 1952.
Em 1952 tornou-se vice-presidente da CBD, cargo que dividia seu tempo com o comando de sua empresa a Viação Cometa. De 1958 a 1974 presidiu a CBD, na época responsável pela organização de todo esporte no país incluindo o futebol. Em 1974 assume a presidência da FIFA cargo que ocupou até 1998 sendo substituído por Joseph Blatter. Com um curriculum tão bacana e tantos recursos familiares nem precisava receber um por fora, mas recebia.
Segundo o jornalista investigativo Andrew Jennis a confusão começou quando Horst Dassler, filho do fundador da Adidas, comprou votos de delegados indecisos da FIFA para ajudar na primeira eleição de João Havelange. Dois anos depois, o brasileiro retribuiu o favor entregando a Dassler e sua empresa, a já falida ISL, o poder exclusivo de comercialização dos principais torneios de futebol do mundo entre eles a Copa do Mundo.
Em 2010 a corte da Suiça (Cantão de Zug) condenou João Havelange e seu ex-genro Ricardo Teixeira a devolver parte de USD 22 mio recebida da ISL entre os anos de 1992 a 2000. Este documento pode ser achado no site da FIFA ou aqui. Em 2011 João Havelange renuncia ao cargo de membro do COI dias antes do veredito do comitê de ética da entidade e em 2013 João Havelange renúncia ao cargo de presidente honorário da FIFA dois dias antes da sentença suíça virar pública.
“Um visionário”. Foi assim que Carlos Arthur Nuzman, outro peso pesado do esporte nacional definiu João Havelange. Difícil definir as relações de Havelange com Nuzman, o que é fácil dizer é que o primeiro foi grande defensor do segundo, inclusive no final de sua carreira quando tentou manobrar para que o COI mudasse o limite de idade de seus membros atualmente em 70 anos. A ideia era manter Nuzman, hoje com 72 anos, na Assemblei Geral do COI até pelo menos a Olimpíada do Rio.
Impressionam as semelhanças do curriculum dos dois, 24 anos mais moço o também advogado Nuzman foi nadador do Fluminense mas foi o vôlei que o levou para os jogos Olímpicos de Tóquio em 1964. Em 1975 Nuzman assume a presidência da Confederação Brasileira de Voleibol e em 1997 assume a presidência do Comitê Olímpico Brasileiro, sendo substituído na CBV pelo seu fiel escudeiro Ary Graça Filho.
Sem dúvidas foi seu trabalho na CBV que o catapultou para o COI, foi dele a ideia de investir no marketing esportivo e gestão administrativa, o que acabou gerando muitos resultados ao vôlei brasileiro. Infelizmente os resultados não vieram sem uma presença marcante nas folhas policiais. O último escândalo custou a presidência do escudeiro Graça Filho após 17 anos no cargo. A acusação é a seguinte, o Banco do Brasil, patrocinador histórico do vôlei, passou a fechar seus contratos de marketing diretamente com a CBV, mas parece que pagou R$ 25 milhões em comissões de venda para empresas dirigidas pelos funcionários da CBV. Esta acusação e seus desdobramentos podem ser acompanhados na ótima série de reportagens da ESPN intitulada Dossiê Vôlei ou aqui.
Este é só mais um exemplo de como no Brasil ainda é difícil a convivência de verba pública em empresas privadas.
Para refrescar a memória, Henrique Pizzolato era o diretor de marketing do Banco do Brasil quando explodiu o mensalão. Processo pelo qual foi condenado a 12 anos e sete meses pelos crimes de peculato, corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Era ele quem negociava os contratos de patrocínio do Banco do Brasil.
Hoje Nuzman acumula as presidências do COB e do Rio 16, comitê organizador da Olimpíada. Mas porque tanta concentração de poderes? Normalmente a organização da Olimpíada é separada da organização da equipe Olímpica, foi assim em Londres onde Sebastian Coe liderou a Organização da Olimpíada e Lord Moynihan presidiu o team Great Britain.
Bom deixemos Nuzman responder a pergunta acima:
“Sem querer ser arrogante nem melhor ou pior do que ninguém, é preciso lembrar que não havia e não há ninguém tão preparado para esse cargo (presidente do COB) como eu”
Infelizmente esta opinião carece de comprovação objetiva, muito pelo contrário. Se é difícil falar que a equipe Olímpica brasileira tem desempenho acima da média, é muito fácil mostrar que a organização do esporte brasileiro apresenta falhas bastante impressionantes pelo menos no quesito honestidade.
Apenas no último ciclo olímpico tivemos a intervenção nas federações de Vela, Tiro Esportivo, Badminton e Desportes no Gelo, além disto dois pesos pesadíssimos de sua equipe e longevos no comando de suas confederações se afastaram após graves denúncias de irregularidades, são eles o advogado Ricardo Teixeira e o bacharel em direito Ary Graça Filho. Outro baixa importante na equipe foi a do advogado Roberto Gesta que após 26 anos passou a presidência da confederação brasileira de atletismo para José Antonio Martins.
Agora que já conhecemos um pouco do Curriculum dos principais power brokers do esporte brasileiro falta explicar como eles conseguem manter e aumentar a sua zona de influência por tanto tempo.
Um leitor atento poderia dizer que o COB tem mais advogados que um bom escritório de advocacia e o caminho é mais ou menos por aí.
O COB é uma organização não governamental de direito privado, ou seja, ela é privada e regida por seu estatuto. Os estatutos do COB dão um poder praticamente absoluto ao seu presidente, ele é o cara que manda prender e manda soltar.
Vejamos um exemplo. Na eleição para presidente são 33 os membros votantes, os trinta presidentes das confederações mais três membros natos (Nuzman, seu vice André Richer e João Havelange). Para piorar o quadro, qualquer candidatura tem que ter o apoio de 10 confederações o que praticamente inviabiliza uma chapa de oposição. O último que tentou concorrer numa chapa de oposição foi Eric Maleson o presidente da Confederação de Desportes no Gelo, uma daquelas confederações que sofreu intervenção. Este estatuto acaba eternizando o mandato de seu presidente em eleições de chapa única.
Para tentar combater este regulamento o governo mandou para o congresso a MP 620/2013, que limita a apenas uma reeleição sem sair do cargo o mandato dos dirigentes de entidades esportivas que recebem verbas públicas. Esta lei já foi aprovada e sancionada pela presidente. Abaixo a declaração do não tão democrático Nuzman a este respeito:
“Ficar depois da Olimpíada é uma opção, sim. O projeto de lei que limita o tempo nessa função que ocupo não seria um impedimento para isso. Ele valeria justamente a partir de 2016, e por dois mandatos. Seria possível, portanto, permanecer no cargo até 2024.”
Mas Shita, o que isto tudo tem a ver com as Capitanias Hereditárias?
Para responder a esta pergunta segue abaixo uma tabela com todos os atuais votantes para a presidência do COB bem como sua referida Confederação e data de posse.
Confederação Brasileira de | Presidente | A partir de |
Desportos Aquáticos | Coaracy Nunes Filho | 1988 |
Canoagem | João Tomasini Schwertner | 1988 |
Handebol | Manoel Luiz Oliveira | 1989 |
Tenis de Mesa | Alaor Azevedo | 1996 |
Triatlo | Carlos Alberto Machado Fróes | 1999 |
Tiro com Arco | Vicente Fernando Blumenschein | 2000 |
Judô | Paulo Wanderley Teixeira | 2001 |
Desportos na Neve | Stefano Adolfo Prado Arnhold | 2002 |
Pentatlo Moderno | Helio Meirelles Cardoso | 2002 |
Hóquei Sobre a Grama | Sydnei Rocha | 2003 |
Lutas Associadas | Pedro Gama Filho | 2004 |
Tênis | Jorge Lacerda da Rosa | 2004 |
Ciclismo | José Luiz Vasconcelos | 2005 |
Boxe | Mauro José da Silva | 2008 |
Basketball | Carlos Boaventura Correa Nunes | 2009 |
Esgrima | Gerli dos Santos | 2009 |
Ginástica | Maria Luciene Cacho Resende | 2009 |
CHipismo | Luiz Roberto Giugni | 2009 |
Rugby | Sami Arap | 2010 |
Taekwondo | Carlos Luiz Pinto Fernandes | 2010 |
Futebol | José Maria Marin | 2011 |
Atletismo | Roberto Gesta de Melo | 2012 |
Badminton | Francisco Ferraz de Carvalho | 2012 |
Levantamento de Peso | Enrique Monteiro Dias | 2012 |
Remo | Edson Altino Pereira Junior | 2012 |
Vela | Marco Aurelio de As Ribeiro | 2012 |
Desportes no Gelo | Emílio Strapasson | 2013 |
Tiro Esportivo | Frederico José Pereira da Costa | 2013 |
Golfe | Paulo Pacheco | 2014 |
Voleibol | Walter Pitombo Larangeiras | 2014 |
Membro Nato | Carlos Arthur Nuzman | 1995 |
Membro Nato | João Havelange | 1956 |
Membro Nato | André Gustavo Richer | 1995 |
Notem que com a saída dos 3 lá de cima o atual presidente da CBDA, o também advogado e também ex-nadador do fluminense, Coaracy Nunes Filho se tornou o decano dos dirigentes esportivos do Brasil. Ele chegou a este título após ser 5 vezes reeleito em chapa única. Coaracy assume a CBN em 1988 com amplo apoio dos nadadores, inclusive alguns leitores deste blog, muda o nome da entidade para CBDA e no ano seguinte assina o primeiro grande contrato de patrocínio com os Correios. O mesmo Correio que anos depois abriu o caminho para as investigações que desembocaram no mensalão.
Mas isto já é história para outro post…
Gostei do artigo. Em geral temos a tendência a achar este tipo de assunto mais árido, porém não vamos nos iludir: aqueles que se não se interessam por política estão de fato dando uma procuração aos que se interessam para decidir por eles.
Não tenho nada a favor ou contra o Sr. Coaracy. No longínquo ano de 1988 eu era um dos jovens nadadores que apoiavam mudanças na Confederação, sob a liderança de inúmeros nadadores consagrados (e que para minha alegria periodicamente escrevem e postam seus comentários no blog). As mudanças vieram e durante um bom período foram salutares. Contudo, creio que novas mudanças são necessárias.
A alternância de poder é importante. A transparência é fundamental. Creio que devemos reconhecer a importância do Sr. Coaracy para o nosso amado esporte, mas o tempo dele (ou de qualquer outro que se tornasse imperador da CBDA, pois 1988-2014 e contando é de fato um Império) já passou. E passou há muito tempo.
Por último, deixo o registro de que se o próximo presidente da CBDA estiver entre os leitores do blog, não se esqueça de alterar os estatutos quando o Sr./Sra. assumir o cargo para permitir somente uma reeleição.
Veirano, compartilho da sua opinião sobre o Sr. Coaracy (aqui).
Caro Roberto,
Concordo 100% com suas palavras e acho que a apatia geral dos brasileiros é condição necessaria para que este ciclo não seja quebrado.
Não gosto de escrever um artigo como este onde vou levantando uma quantidade muito grande de problemas, mas a minha esperança é que o grande legado desta Olimpiada seja o amadurecimento do esporte brasileiro com um outro nível de governança corporativa.
Acho que estamos no período de distriuição criativa, pena que demorou tanto tempo…
Laurival, as provas sobre o enriquecimento ilícito do Havelange são irrefutáveis, bem como a falência do esporte olímpico de base na era Nuzman e o cansaço da CBDA.
Mas não entendi o que o Nuzman e o Coaracy tem a ver com os ilícitos do Havelange e nem qual o problema de ser advogado no caso.
Caro Cordani,
Não disse no texto que Nuzman e Coaracy tem participação nos ilicitos do Havelange, minha idéia foi mostrar um perfil dos três dirigentes e elencar algumas confusões bem grandes que acontecem/aconteceram ao lado deles.
O único dos três realmente pego com a mão na botija foi o Havelange, mas este foi pego pela justiça Suiça. A pergunta para a qual não tenho resposta é se a justiça brasileira fosse igual à Suiça o que aconteceria com todos estes cartolas que tem tido um contato umbilical com empresas publicas envolvidas em escandalos numa escala quase industrial. Fica aqui registrada esta duvida.
Note que os três tem em comum o fato de serem ex-nadadores do fluminense e advogados. Na verdade encontrei um padrão quanto a formação educacional dos dirigentes brasileiros e achei importante mencionar pois minha hipótese de trabalho é que estas reeleições eternas só conseguem funcionar pois existe no grupo o domínio muito grande da lei em toda latitude que ela oferece aqui no Brasil.
Ou seja, uma tese de trabalho que no mínimo é curiosa.
Caro Shita,
Realmente lamentável as comprovações de manobras corruptas de João Havelange em frente a FIFA.
Li a bibliografia dele no sensacional JOGO DURO e o que ele fez pelo esporte nos quatro cantos do mundo, é impressionante. Merece ser rico e ter reconhecimento, pena que parte significativa da primeira parte tenha vindo de forma ilícita.
Já faz alguns anos que li e pelo que me lembre, ele era executivo, mas não dono da Viação Cometa.
Sobre a sua colocação: “Um leitor atento poderia dizer que o COB tem mais advogados que um bom escritório de advocacia e o caminho é mais ou menos por aí” – fiquei na dúvida se você está generalizando de que ao ter advogados na estrutura de uma organização a cultura do favorecimento será certa. É isso?
Nesse caso, teria que discordar pois veria como preconceito a uma classe, que como qualquer outra, é constituída por bons e por maus profissionais.
Quanto aos pontos comentados por Veirano e Cordani, que constitui a principal linha do artigo, concordo plenamente.
Caro Fernando,
Não tenho absolutamente nada contra advogados, só acho que Havelange, Nuzman e cia conseguiram ter tanto poder e por tanto tempo pois se organizaram para tal. Um dos fatores determinantes para isto são os estatutos da CBF e do COI e é justamente aí que o fato de serem quase todos advogados os deixa com vantagem competitiva pois acabam usando de seu expertise para criar barreiras de entrada.
Isto não é nem um pouco ilegal, pode ser antidemocrático mas não ilegal.
Concordo Shita. Um abraço.
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