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Natação e cia.

Mulheres trans: um parâmetro da natação para os outros esportes (OBS: esse post não é sobre a Tifanny)

Em primeiro lugar, o óbvio. Tifanny Pereira de Abreu é uma jogadora de Voleibol oficialmente reconhecida pelo COI e tem legalmente o direito de jogar esse esporte na categoria feminino, inclusive nos Jogos Olímpicos representando o Brasil. Isso é indiscutível.

Esse post não é sobre a Tifanny.

O Voleibol é um esporte que tem certa dose de subjetividade , e é muito difícil julgar nível técnico. Afinal, Ana Moser era melhor do que Mari? E a Fofão, era melhor do que a Venturini? Não há como ter certeza. O que me estimulou a escrever esse post não foi nem o infeliz comentário de Bernardinho, do qual ele inclusive se desculpou (desculpas aceitas), mas sim essa outra nota que saiu no UOL na sexta feira passada (imagem abaixo):

tifanny

No texto acima, o colunista demonstra que essa jogadora em particular tem um determinado desempenho, ou seja, uma evidência ANEDÓTICA que para o caso global não explica… absolutamente NADA. Tifanny poderia ser muito melhor ou pior do que as suas colegas, mas isso estatisticamente não tem o MENOR SIGNIFICADO na discussão sobre o nível de jogadoras trans frente ao universo das mulheres. Tem a ver apenas com o nível dessa jogadora em particular.

Então vamos tratar do assunto de forma mais geral? Por isso decidi contar para as pessoas dos outros esportes o que nós, que vivemos a natação, já sabemos. Analise, querido leitor, a tabela a seguir.

Prova Índice Troféu Brasil MASC Índice Olímpico FEM Recorde Mundial FEM
50 Livre 23.73 24.77 23.67
100 Livre 51.00 54.38 51.71
200 Livre 1:53.60 1:57.28 1:52.98
400 Livre 4:02.00 4:07.90 3:56.46
800 Livre 8:40.00 8:33.36 8:04.79
1500 Livre 16:15.50 16:32.04 15:20.48
100 Costas 59.03 1:00.25 58.00
200 Costas 2:09.20 2:10.39 2:04.06
100 Peito 1:04.50 1:07.07 1:04.13
200 Peito 2:24.40 2:25.52 2:19.11
100 Borboleta 55.55 57.92 55.48
200 Borboleta 2:07.20 2:08.43 2:01.81
200 Medley 2:11.30 2:12.56 2:06.12
400 Medley 4:43.80 4:38.53 4:26.36

Na tabela acima podemos observar três colunas de tempos:

1) Índice de participação (para homens) no campeonato brasileiro absoluto, o Troféu Brasil. Trocando em miúdos, é esse o tempo de corte para o cidadão adulto ser considerado “atleta” no país.

2) Índice Olímpico “A” para moças, ou seja, um tempo que coloca a atleta na elite do esporte mundial.

3) Recorde Mundial Feminino. O melhor tempo obtido por uma mulher em todos os tempos.

Tomemos por exemplo o caso dos 200m Livre. No TB que começa agora na semana que vem (start list aqui) temos 39 nadadores inscritos com índice nessa prova, ou seja, ao menos trinta e nove nadadores que fizeram nos últimos 12 meses 1:53.60 ou menos nos 200m Livre.

Cada um desses 39 nadadores faria o índice olímpico feminino A (1:57.28) com muita facilidade. E até o vigésimo oitavo entre os inscritos na prova tem tempo de inscrição melhor do que o recorde mundial feminino, da italiana Federica Pellegrini (1:52.98).

Nos 100m Livre a situação é ainda mais dramática. TODOS os inscritos nessa prova fazem um tempo melhor do que o recorde mundial feminino. O último da lista ainda “ganha” da Sarah Sjoström por mais de um corpo de diferença. Qualquer um deles, e muitos outros que não deram o índice do TB (51.00) fazem melhor do que qualquer mulher já fez na história do esporte, e centenas deles fazem menos do que o índice feminino olímpico da prova. (OBS: e no mundo? No ranking mundial da FINA 2018, o nadador de número 500 fez 50.71).

Repare, leitor, que um nadador homem de nível técnico ruim que nem tenha índice de participação para o campeonato nacional do Brasil poderia em tese se descobrir trans, cumprir os trâmites regulamentares, diminuir os níveis de testosterona, aguardar o período mínimo e disputar a vaga olímpica brasileira com muitas chances de sucesso (sem mencionar a chance de recorde mundial).

Estou com isso dizendo que vai haver uma enxurrada de pessoas descobrindo-se mulheres trans para levar vantagem no esporte? Creio que não! A troca de sexo está muito looooonge de ser uma ação banal e, sobretudo no Brasil, onde vivo e conheço bem a cultura, acho essa suposta enxurrada bastante improvável. (Não duvidaria entretanto que outros países possam fazer algo do tipo um dia. Seria impossível imaginar um revezamento com quatro chinesas trans em, digamos, 20 anos?)

De qualquer forma, fica bastante claro que, no exemplo da natação, quaisquer mulheres trans que carregam um par de cromossomos sexuais tipo XY serão tipicamente melhores do que suas colegas com XX, melhores a ponto de uma XY “ruim” ser superior à melhor XX de todos o tempos.

Testes com mulheres trans após um ano com níveis de testosterona mais baixos ainda são necessários, mas é impossível negar: a ameaça às moças na natação, como vimos acima, é bem palpável.

Se a ameaça vai se concretizar até 2020? É claro que não. Mas urge que aqueles que amam o esporte (nós) de alguma forma achemos uma solução que proteja as mulheres dessa potencial competição desleal. Com ciência, com humanidade, com proteção, com perspectiva histórica e sem histeria, nem que seja uma conversa para o futuro.

Afinal, como se sabe, o futuro sempre teima em chegar…

Sobre rcordani

Palmeirense, geofísico, ex diretor da CBDA e nadador peba.

21 comentários em “Mulheres trans: um parâmetro da natação para os outros esportes (OBS: esse post não é sobre a Tifanny)

  1. Marina Cordani
    8 de abril de 2019

    Corajoso, e… correto!

  2. Aécio Amaral
    8 de abril de 2019

    Esse é um problema muito estranho mesmo….. mas não é novo! Na década de 80, um tenista no máximo mediano chamado Reneé Richards fez a cirurgia de troca de sexo e jogou grandes torneios da ATP na chave feminina. Não ganhava nunca, mas ficava bem classificado(a). Os comentaristas, na época, diziam que ele não ganhava de propósito, pois, se ganhasse, tirariam o seu “direito” de jogar contra as mulheres.

    • rcordani
      8 de abril de 2019

      Você tocou em um ponto crucial. Elas (as mulheres trans) vão poder competir, mas jamais poderão prevalecer. Imagino que no dia que ganharem, vão concluir que a competição é desleal e irão mudar as regras de testosterona, de prazo, etc. E por isso é um caso perde-perde. Muito difícil.

  3. Patricia Angelica
    8 de abril de 2019

    É mesmo pra pensar…
    Mas é preciso colocar em perspectiva que, com a tendência de maior aceitação social (sempre vai haver preconceito, mas hoje, pelo menos, há muito mais abertura pra isso do que há 10 ou 20 anos), pessoas trans têm se “descoberto” e até feito transição relativamente cedo (há casos de adolescentes já fazendo a transição). Com isso, não sei se, no futuro, haverá tanta diferença. No entanto, obviamente, cada caso é um caso e, ainda assim, é (e será cada vez mais) impossível julgar cada caso em particular e é cada vez mais necessário que se façam regulamentações o mais generalizantes possível para situações assim.

    • rcordani
      8 de abril de 2019

      transições mais cedo dificilmente trariam competição desleal, imagino. E SIM, regulamentações generalizantes e claras são muito desejáveis. Hoje existe uma que, no meu modesto entender, é insuficiente.

  4. Rodrigo M. Munhoz
    8 de abril de 2019

    Instigante esse tema…Imagino que ainda vá gerar algumas discussões interessantes e acaloradas num futuro não muito distante dos esportes.

    Eu talvez esteja sendo ingênuo, mas na minha opinião, acho improvável que países (aqui me referingo a governos ou organizações desportivas nacionais) invistam para incentivar mulheres trans.em práticas desportivas visando vantagem indevida. Creio também que qualquer discussão neste tema não pode banalizar o enorme potencial de complexidade individual, assim como implicações humanas, psicológicas e sociais com relação a procedimentos de mudança de sexo e redução posterior dos níveis de testosterona – que concede a tal vantagem as mulheres trans. Além disso, ainda que raros, há casos documentados de níveis hormonais altos em mulheres (hiperandrogenismo) e casos de mulheres com cromossomos XY (nem sei como acontece, mas lembro de uma corredora polonesa e outra espanhola que foram desclassificadas com base em “cromossomos a mais” e em pelo menos um caso, a decisão foi revertida. Ou seja, o tema dá trabalho a federações esportivas ao redor do mundo há tempos. O assunto passa longe de ser simples e por isso requer mais estudo e transparência.

    Isto posto, não acho tão improvável que indivíduos possam decidir se aproveitar da condição de ser trans para atingir sucesso e fama de qualquer tipo. Não por serem trans, obviamente, mas sim devido a condição humana – sujeita a contradições do tipo. Nesse ponto, se em algum caso houver semelhança dessa “vantagem” com doping, a igualdade de condições que protege o esporte deve prevalecer e a prática barrada. O que vamos usar de instrumentos para decidir quais são os parâmetros certos de competir com mulheres, deixaria para a ciência – mesmo sabendo que ainda possa haver margens de interpretação, como vemos no caso super atual de Caster Semeneya.

    Ajudará muito se tivermos a tecnologia e ciência pautadas pela ética e sensibilidade humana e sobretudo me interessaria muito saber o que as atletas mulheres atuais e futuras terão a dizer sobre isso.

    Abraços!

    • rcordani
      8 de abril de 2019

      Concordo muito com essa frase que transcrevo “me interessaria muito saber o que as atletas mulheres atuais e futuras terão a dizer sobre isso. ”

      Infelizmente temos poucas opiniões femininas por aqui…

  5. Aécio Amaral
    8 de abril de 2019

    A Revista eletrônica CRUSOÉ dessa semana faz uma obordagem bem interessante sobre esse tema. Vou colocar o link, mas como é um site pago, não sei se todos vão conseguir acessar….. https://crusoe.com.br/edicoes/49/o-politicamente-insano/

    • rcordani
      8 de abril de 2019

      Acessei tranquilo, obrigado (se bem que já tinha lido). A Ana Paula é uma das ativistas desse tema (e de outros), que às vezes se misturam. Nesse caso específico das mulheres, assim como a Ana Paula eu penso que as mulheres precisam de proteção à competição potencialmente desleal.

  6. Rogério Romero
    8 de abril de 2019

    Tema controverso e sem uma resposta clara é fácil. Pessoalmente sou contra, pelos motivos expostos mas também por outros que vou me abster de comentar aqui.

    Mas achei curioso que nossos índices em provas curtas são próximos aos recordes mundiais enquanto das provas longas até me impressionaram de fracas. Seria mais um assunto a discutir aqui?

    Abraço a todos e Feliz Dia da Natação!!

    • rcordani
      8 de abril de 2019

      Boa Romero. Realmente achei muito curioso isso também. Será que somos realmente o país dos velocistas ou estatisticamente isso acontece no mundo inteiro?

  7. Túlio Pierobon
    8 de abril de 2019

    Cordani,
    Parabéns pelo artigo. Concordo com o argumento e o paralelo traçado para o universo aquático. O tema é controverso, envolve aspectos sociais de inclusão, mas na minha opinião se pudessem (confederações, federação) deveria se considerar em qualquer esporte de alto rendimento, performance a proibição do “doping” genético de gênero quando há uma clara diferença fisiológica , XX XY, o que seja. Como avaliar isso? Não é simples mas é uma premissa, estamos avaliando no caso da Tifany, no vôlei, mulher trans. Um homem trans teria desempenho semelhante? Ou mesmo que houvessem homens trans, por mais habilidoso, forte, ágil, enfim ainda sim haveria a diferença fisiologia com elevada influência na performance dos atletas. Porém temos esportes (olímpicos) onde a diferença fisiológica não influencia ou tem um peso bem menor na performance, ex: tiro, arco. Então teria que se fazer uma análise séria em cada esporte e a influência da genética de gênero na performance. Há influência. Proibido. Não há. Permitido.
    Agora temos também um outro aspecto, o esporte como formação onde a performance na tem qualquer peso ou influência, aí sim, a prática de qualquer esporte deve ser disseminada, nas escolas, universidades, deveria se ter uma política pública para isso, mas isso é objeto para uma nova discussão.
    Grande abraço
    Tulio

    • rcordani
      8 de abril de 2019

      Tulio, há estudos sobre isso, inclusive quando o COI estipulou as regras para mulheres trans, foram baseadas nesses estudos. Mas como tudo que está começando, e esse é certamente um tema novo para todos, muitos estudos ainda serão necessários. E obrigado pelo seu comentário.

  8. Fernando Cunha Magalhães
    8 de abril de 2019

    A ideia da construção do comparativo com as performances da natação foi brilhante e esclarecedora.

    Penso que há toda uma mobilização social para provocar as mudanças culturais necessárias para a aceitação da escolha sexual de cada indivíduo, garantindo seus direitos de viver da forma como quiser, sem ser penalizado em qualquer aspecto por sua opção, escolha, natureza, desejo de ser.

    Vejo esse processo como uma ação de respeito a condição humana.

    Um ato de amor ao próximo.

    E tenho convicção que a prática de esportes está entre esses direitos.

    Agora, participar de competições oficiais contra pessoas com características genéticas diferentes, mesmo com todas as considerações levantadas, penso que passa a ser uma questão de submeter as adversárias a uma competição desigual.

    E aí, existe o risco de “para respeitar uma, desrespeitar todas as outras”.

    Na minha percepção ultrapassou-se um limite que não era necessário ter sido ultrapassado.

    E minha hipótese é que, provavelmente, existem muitas mulheres com um nó na garganta, com medo de gritar o quanto se sentem injustiçadas com esta situação.

    • rcordani
      9 de abril de 2019

      Nossa, excelente síntese, na mosca Esmaga. Obrigado!

      • Fernando Cunha Magalhães
        10 de abril de 2019

        É nois, parceiro!

    • Barbara sordi
      9 de abril de 2019

      Excelente Magalhães.
      E pensando na inclusão, será que não seria mais simples incluir uma categoria mulheres trans e homens trans…eu não estudei a fundo esse assunto, mas o pouco que pesquisei vejo como uma alternativa mais simples.
      So espero que eu não esteja sendo raza e simplista.
      😉

      • Fernando Cunha Magalhães
        10 de abril de 2019

        Me parece mais justo, entretanto, creio que não despertaria um grande nível de competitividade e consequentemente, de projeção, e assim, eu acho que eles e elas não querem.

        Se quisessem, ficariam satisfeitos e satisfeitas em participar da Olimpíada Gay que é um grandioso sucesso de participação mas que fica restrita a ao universo gay, sem projeção para o restante da sociedade, e creio que não atrai patrocínios fortes, premiação em dinheiro, salários para os atletas, etc.

  9. Lelo Menezes
    9 de abril de 2019

    Pô, se eu soubesse disso em 1992, teria feito bem a barba, botado uma peruca, um maiô meio solto “embaixo” e seria campeão olímpico de 100 e 200 peito f-e-m-i-n-i-n-o!

    Brincadeiras a parte, o tema é bastante complexo, mas hoje, até que me provem o contrário, uma atleta trans tem uma vantagem física considerável sobre uma atleta feminina e como a premissa básica de qualquer esporte é a igualdade de condições, sou absolutamente contra que atletas trans compitam como mulheres. Não enxergo nenhum argumento válido para o contrário.

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