“Gold in the Water” – The True Story of Ordinary Men and Their Extraordinary Dream of Olympic Glory – de P. H. Mullen é um livro diferente, no bom sentido.
Conta a história de uma equipe de natação e de alguns nadadores dessa equipe na trajetória de tentar a vaga olímpica americana para Sydney – 2000. À primeira vista, parece tratar-se de mais um daqueles relatos mentirosos do tipo “se você acreditar e quiser algo com muita dedicação, você vai conseguir”, culminando com o ouro olímpico de alguém em Sydney 2000. Felizmente, tal impressão é falsa; na verdade, como veremos, o livro trata justamente do oposto. Seguem dois trechos que retratam bem o espírito do livro.
Na pg 41:
“É mais fácil pintar a Última Ceia de Da Vinci em uma cabeça de um alfinete do que entrar para o time olímpico americano de natação. É isso o que faz essa eliminatória mais significante. Eles estavam a ponto de iniciar uma jornada que muito provavelmente ia partir seus corações. Mas também representava uma chance de fazer história.“
Já na pg 50-51 (diz o técnico):
“Se vocês vierem aqui todos os dias sem exceção de hoje até as eliminatórias olímpicas, se vocês não derem desculpas bobas nem se permitirem ‘dias ruins’, vocês terão feito o máximo possível para se classificar. Esse é o objetivo de vocês. Se vocês iniciarem essa jornada mas não agirem desta forma, fatalmente um dia desses vocês se pegarão em uma rodinha em uma festa, mais ou menos com uns 55 anos, contando aos outros quão bons vocês poderiam ter sido.”
A vida de um esportista competitivo é suficientemente rica para que se passe por quase todos os momentos descritos no livro, descontadas as devidas proporções. No caso de quatro específicos nadadores de peito, nem é preciso descontar as devidas proporções…
Fevereiro de 1989, Maracanã, Troféu Brasil de natação, a competição mais importante do ano. A prova de 200 peito foi no primeiro dia. Quatro amigos (LAM, Renato, Munhoz e Lelo) pegaram final A nessa prova.
LAM pegou segundo lugar, medalha de prata. Ele ainda não sabia (e nem sequer acreditaria se lhe contássemos naquele dia), mas o tempo feito naquele dia seria o melhor tempo de sua vida. Nunca foi melhorado. De noite na cama sobre os louros de sua medalha de prata, LAM sonhou acordado com as Olimpíadas.
Renato pegou quarto lugar, o segundo da série de cinco quartos seguidos (karma que ele evidentemente não conhecia na época), porém, dos cinco, aquele quarto lugar foi o menos sofrido de todos. Se quebrado como estava (após fraturar o frontal, contundir os dois ombros e quebrar o joelho esquerdo) e tendo podido treinar tão pouco – apenas 40 dias – para aquela competição, ainda assim ficou em quarto no Troféu Brasil, quem poderia com ele quando pudesse treinar direito? As próximas Olimpíadas estavam praticamente ao alcance da mão.
Munhoz naquele dia foi ‘apenas’ o quinto colocado, mas também tinha motivos para sonhar alto. Era de longe o mais novo da prova, e dois dias antes conseguira o fantástico segundo lugar nos 100m peito. Com apenas 16 anos e ele já era o segundo melhor nadador do Brasil: quem seria capaz de impedir sua fulminante investida rumo a Barcelona 1992?
Lelo não foi muito bem naquele dia (sexto lugar), mas para ele estava tudo bem. Uma semana antes, na mesma piscina, Lelo havia obtido a primeira de suas grandes vitórias na carreira, sagrando-se campeão brasileiro juvenil e obtendo a vaga para o sul-americano juvenil. Lelo estava debutando em uma carreira que viria a ser a mais gloriosa de todos os quatro, com um recorde brasileiro absoluto de curta e participação em dois mundiais. Naquele dia do verão carioca, Lelo tinha a certeza de que um dia seria um nadador olímpico, embora ainda tivesse dúvidas sobre se ganharia uma medalha ou não.
Daquela competição em diante, e por pelo menos mais dois anos (quando LAM foi o primeiro a desistir do sonho após quebrar o pau com o técnico, sintoma evidente do stress acumulado nesses anos todos), os quatro colocaram suas cabeças na água todos os dias, 10 vezes por semana, madrugadas a fio, sábados, domingos e feriados, perseguindo seus sonhos olímpicos. Igualzinho aos campeões olímpicos. Igualzinho aos caras do livro. Só que nenhum conseguiu. Sejamos sinceros: observando friamente e com a devida distância, nenhum deles chegou sequer perto.
As reportagens de TV são sempre feitas com os grandes campeões, pois ninguém entrevista os que tentaram e não foram. Nelas, esses campeões são induzidos a dizer bobagens como “eu sabia que ia conseguir”, ou “basta querer uma coisa com muita dedicação que se consegue”, ou então a clássica: “basta acreditar”. Etc.
Esses quatro nadadores estão aí para provar que nem tudo isso é verdade. Eles tentaram tanto quanto aqueles que conseguiram, eventualmente até mais, e não foram. Mas hoje, passados vinte e três anos daquele dia na piscina do Maracanã, esses quatro sujeitos são capazes de lembrar o passado e pensar:
“Eu fui tão bom quanto eu pude”.
E, claro, mais importante, mantém uma grande amizade. Quantos quatro finalistas A simultâneos de TB ainda se encontram regularmente depois de 23 anos?
Voltando ao livro: vale a pena. Boa leitura.
Bom, acho que só posso agradecer….O livro do PH Mullen – presente Cordanístico – é muito bom e com certeza vale a leitura para atletas e ex-atletas. Mas sou grato principalmente pela memória – que já não é mais a mesma 🙂 – do Renato. Nesse texto, encontro não só mais um bom post, mas também o registro de uma parte importante da nossa “juventude” como nadadores. Da minha parte posso dizer que, apesar do eventual desapontamento, dor e frustração, a jornada valeu e continua valendo a pena. Além do mais, como diria um velho técnico, conhecido de alguns aqui: “Vencer sempre não é o normal”.
Abraços,
Munhoz.
Em vez de agradecer o sr. podia comprar um livro para mim também…
R., Já te dei vários livros (lembro de um que inclusive inspirou uma certa viagem em família), mas admito que nenhum com o impacto do “Gold in the Water”. Estou trabalhando nisso.
Abratz !
Eu não tenho o livro… se alguém quiser me dar, prefiro em inglês!
Mas vamos ao que interessa: gostei do texto, e quero acrescentar que cada um tinha as aspirações e frustrações que podia. Explico: acho que senti tudo o que vocês sentiram também, sem jamais ter tido o sonho de ir as Olimpíadas. Meu sonho era pegar final A de troféu Brasil. Quase cheguei lá: fui desclassificada na virada do nado de peito após ter feito o sétimo tempo nos 400 medley. Mas consegui um grande feito para meus objetivos, um quarto lugar no Brasileiro Juvenil B na mesma prova. Fiquei feliz, pois deveria mesmo ter sido quinta (a quarta foi desclassificada). E além disso o terceiro tempo estava muito longe… Foi também minha primeira e única final em Campeonato Brasileiro. Sem contar JUBS, é claro. Quando quero embelezar um pouco minha carreira digo que fui campeã Brasileira universitária. Para quem não entende muito de natação, cola.
Boa Marina! É impressionante o que tem de gente que diz ter medalhado em Brasileiro, quando na verdade a medalha vem de alguma competição sem expressão com nome de Brasileiro. No seu caso ser campeã do JUBS é de fato ser campeã brasileira universitária. E lembrando que brasileiro mesmo só a tríplice coroa – Júlio Delamare, José Finkel e Troféu Brasil!
Marina, pode pegar o meu, inclusive autografado pelo autor.
Salvo engano, acho que naquele TB da desclassificação você estava com o sexto tempo.
(copiando o que escrevi no FB), aproveito para dizer que quem ganhou a prova dos 200P foi (para variar) o Alex Hermeto, o bronze foi (se não me engano) o Renato Alves e o Carlos Araujo nadou na raia “A” como “avulso” – e teria pego medalha. E o ouro do 100P foi para o Cícero Tortelli, que havia nadado a olimpíada de Seul alguns meses antes. Nenhum nadador de peito brasileiro foi para Barcelona 1992 e nem Atlanta 1996. Eduardo Fischer retomou o peito olímpico em Sydney – 2000.
Alguém sabe dizer se alguma menina nadou em 1992?
Eu não sei dizer lelo, mas que o texto ta sensacional, e a foto melhor ainda….
Também não tenho certeza sobre as meninas em 92, mas achei este video sobre o TB no MTC que foi a 1a parte da seletiva: http://www.youtube.com/watch?v=Mq-0S9UhaLc destaques da reportagem foram para o Piccinini, Gustavo e Piu … tunel do tempo total…
Nao conhecia esse blog de vcs mas nunca me identifiquei tanto com um texto como esse do sonho olímpico.Nesse mesmo ano de 1989 com 14 anos consegui vencer no Júlio delamare dos 100livre aos 1500com recorde de campeonato nos 200,800 e 1500.Fui tida como a sucessora de Patricia Amorim e etc.Logo depois fui”poupada” pelo Sérgio e nao nadei esse troféu Brasil que vcs comentaram mas mesmo assim fui para o sul-americano juvenil e copa latina.foram as primeiras de muitas seleções brasileiras…..mas nunca consegui chegar a uma olimpíada.Os melhores tempos da minha vida obtive nesse campeonato o que nao me impediu de ter sido tetracampea dos 800l no troféu Brasil.Apesar das vitorias nenhuma superava a minha frustração em nao melhorar os meus tempos e nao chegar “lá”.E olha que eu treinava,sol, chuva ,domingo,com trio elétrico na rua,sérgio nao aliviava.Mas apesar de todo esforço , de todo sacrifício eu nao consegui.hoje tenho plena convicção que todos os meus anos nadados valeram demais a pena.Tenho excelentes lembranças das viagens,dos amigos,das competições um pouquinho menos excelentes dos treinos..affff eu treinava muito!!!!Minha determinação,disciplina,perseverança devo ao esporte,e quando meus filhos olham os meu troféus e penduram as medalhas no pescoço e dizem:poxa Mamae vc ganhou isso tudo ? eu vejo que nao posso desprezar tudo que vivi apenas pq nao conseguir chegar em uma olimpíada,pq cada medalha e troféu vem com uma história para contar.Ao contrario de vcs nao me encontro com as minhas amigas da epoca mas fico feliz quando posso ter notícias ou encontrar esporadicamente.Desculpem o tamanho do comentario mas aproveitei para “desabafar”.Fiquei curiosa para ler o livro.vou procurar.
Excelente comentário! Obrigado, Viviane. Você marcou uma época na natação brasileira, com dedicação e raça, indo mais longe que a maioria de nós. Ainda assim, acho que partilhamos de alguns pensamentos, pelo jeito… Eu acho que este blog é pra isso mesmo: Lembrarmos desse passado em comum (das partes boas e das não tão boas), discutir o presente e tentar influenciar o futuro, sob a luz de nossos aprendizados, dentro e fora da piscina. E as conversas são a melhor parte. Espero que continue acompanhando. Ah: O livro citado pelo Renato é muito legal mesmo. Abraços! .
É, Viviane, para você também não é necessário “descontar as devidas proporções”…
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Renato, vc tem o resultado desta prova doTB? Um abraço, Miguita
Infelizmente não, Miguita. Se alguém tiver, favor publicar pra gente aqui.
Ok, obrigado, acho que participei desta final.
Um abraço,
Miguita
Miguita, achei o resultado ontem em uma revista. Aguarde os resultados na segunda parte da Saga dos 200 Peito! Abração
Renato, obrigado, estou acompanhando atentamente o seu blog, abraços
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