EPICHURUS

Natação e cia.

Um mestre entre os masters

Quando recebi o gentil convite dos editores para contribuir com o Epichurus, não tive dúvidas sobre qual seria o tema do texto, na verdade a extensão de um post publicado anteriormente. Como atletas e ex-atletas, frequentemente nos surpreendemos com certos resultados e recordes. Como profissionais, não raro deparamos com pessoas que nos marcam por suas realizações.  Como cidadãos, vez por outra temos a oportunidade de conhecer indivíduos cujas ações exercem grande impacto na sociedade.  Difícil, porém, é encontrar quem reúna todas essas características. Por sorte temos a honra de contar com uma dessas personalidades na comunidade aquática, conforme relato a seguir.

Imagine alguém que se mova com destreza na terra, na água e no ar. Que seja especialista em aeronaves e foguetes, fundador de empresa de tecnologia e professor de uma das mais respeitadas universidades em todo o planeta.

Pensou em Tony Stark, Bruce Wayne ou Indiana Jones?

Poderia ser um personagem de ficção, se não estivéssemos falando de um catarinense nascido em 1917 e que se tornaria oficial militar graduado, inventor com patente internacional, pesquisador destacado e empreendedor. Sem falar de nadador master de grande sucesso.

Aldo Weber Vieira da Rosa iniciou sua vida profissional na aeronáutica. Ao longo de sua brilhante trajetória fundou o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (a “NASA brasileira”) e dirigiu o então Centro Técnico Aeroespacial, entidade que abriga o renomado ITA e onde atualmente existe um auditório que leva seu nome. Após ocupar diversas posições de responsabilidade nas forças armadas, entrou para a reserva como brigadeiro-do-ar na metade da década de sessenta.

Atleta de talento desde a juventude, Aldo da Rosa chegou a ser convocado para integrar a equipe olímpica de natação em 1936. Exímio corredor de meio-fundo, reza a lenda que era ainda mais rápido nas pistas do que nas piscinas. Anos depois participaria de um campeonato mundial de planadores, sofrendo sério acidente que lhe causou múltiplas fraturas ao tentar cruzar os Alpes suíços num voo solo. Nem por isso abandonou a paixão pelos ares, tanto que depois serviu como piloto de testes do primeiro helicóptero produzido no Brasil.

Para muitos, aposentadoria é sinônimo de sol, sombra e água fresca. Para Aldo da Rosa, foi o início de uma nova carreira. Voltou para Stanford, onde havia participado de um programa de cooperação entre o Brasil e EUA durante a Segunda Guerra, concluiu o doutorado e continuou na universidade até se tornar professor emérito. Durante muitos anos dividiu seu tempo entre os hemisférios norte e sul. Paralelamente ao trabalho acadêmico, criou a Companhia de Desenvolvimento Tecnológico, iniciativa pioneira na formação de empresas de alta tecnologia no país. Nesse meio tempo ainda escreveu um livro utilizado até hoje em cursos de graduação e pós-graduação em engenharia em todo o mundo.

O amor pela natação não aconteceu à primeira vista, mas voltou com força total mais tarde. Iniciou sua carreira master em 1976, após receber convite para completar uma equipe de revezamento numa pequena competição nos EUA. Naquela primeira participação acabou batendo um recorde americano. A partir daí não parou mais. Sua dedicação evoluiu gradualmente, levando-o a quebrar as primeiras marcas individuais nas provas de medley e peito aos 65 anos. Em 2004, quando foi alçado ao Hall da Fama da Natação Masters Internacional, contabilizava 42 recordes mundiais, boa parte deles obtidos em piscinas brasileiras.

Conversamos com o professor Aldo por telefone, que falou conosco a partir de sua residência em Palo Alto, Califórnia. Abaixo transcrevemos alguns dos trechos da entrevista:

O senhor chegou a ser convocado para participar da seleção olímpica que disputaria os jogos de 1936. Como se deu o envolvimento com o esporte competitivo?

Durante meus estudos no Colégio Militar no Rio de Janeiro participava das competições entre as escolas militares. Naquela época nadava no Clube Guanabara, mas me dedicava mais ao atletismo. Minha principal prova eram os 800m. Ainda assim fui chamado pelo professor Décio Coutinho, técnico da equipe brasileira de natação. Mas aqueles eram outros tempos e acabei decidindo não ir para não perder o ano escolar.  Além disso, tinha gente muito mais bem preparada.

Como o João Havelange?

Sim, o Havelange (ex-Presidente da FIFA, que começou sua carreira esportiva como nadador e jogador de pólo aquático) estava num nível muito acima e treinava no Botafogo, clube com melhor infraestrutura.  Havia outros nomes importantes vindos do Amapá, um dos principais centros de formação de talentos na época.

Amapá?

No Amapá havia um interventor entusiasta do esporte que construiu uma das poucas piscinas olímpicas do país no então território.  De lá saíram diversos talentos.

[Nota: Coaracy Nunes, pai do atual presidente da CBDA, foi deputado federal pelo Amapá durante três mandatos e a equipe local chegou a ser campeã brasileira infanto-juvenil na década de 1950]

Como foi a experiência com o Beija-Flor, primeiro helicóptero produzido no país?

Na aeronáutica fui diretor do projeto que criou o Beija-Flor. Na época contratamos (o engenheiro alemão) Heinrich Focke e sua equipe para nos auxiliar. Uma das grandes frustrações que experimentei foi ver a falta de continuidade, planejamento e visão de longo prazo no governo. O Brasil é o país do mundo com maior experiência em fechar sua indústria. Isso acabou atrasando o desenvolvimento da aviação nacional.

[Nota: Focke poderia ser considerado o “pai dos helicópteros” – assim como no caso de Santos Dumont, nos EUA o engenheiro russo-americano Igor Sikorsky é quem leva a fama]

O senhor poderia citar algumas pessoas que o influenciaram?

Profissionalmente, mencionaria o Brigadeiro Montenegro, criador do CTA e do Correio Aéreo Nacional, e melhor oficial que conheci na Força Aérea. Ele era dono de uma incrível capacidade de realizar coisas talvez ofuscassem àqueles a sua volta. Tivemos brigas homéricas. Na ocasião de seu falecimento a Folha de S. Paulo me pediu que dissesse algumas palavras sobre o Montenegro. Falei que ele era um “sujeito muito ignorante, mas que não havia ninguém melhor do que ele para dirigir pessoas”. A frase foi mal interpretada por alguns, mas sua esposa me telefonou logo após a publicação do artigo para agradecer o comentário.

E no lado pessoal?

Todo mundo deve ter um amigo. Não cinquenta ou cem, mas apenas um. Alguém com quem possa contar em todas as horas. No meu caso essa pessoa foi Theobaldo Antonio Kopp, piloto abatido pelos alemães na Itália durante campanha da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra. Kopp era bastante pragmático e ainda quando éramos jovens coronéis, disse que não via perspectiva profissional dentro da curta carreira militar. Após deixar a aeronáutica, chegou a ser presidente da companhia telefônica de Minas Gerais. Aquilo me fez pensar o que gostaria de fazer após entrar para a reserva. Assim acabei retomando à vida acadêmica.

Como o senhor foi parar nos EUA?

Fui enviado para os EUA em 1940 durante a Segunda Guerra como parte de um programa de aproximação entre as forças armadas americanas e brasileiras. Mas logo perceberam que se me mandassem para o front perderiam a guerra, por isso fiquei estacionado na Base Aérea de Alameda, na Califórnia. Nesse meio tempo acabei me matriculando na Universidade Stanford, que fica próxima dali, e para onde voltaria depois de entrar para a reserva na aeronáutica a fim de concluir o doutorado.  Minha esposa é americana e também por isso decidimos retornar aos EUA.

Como iniciou o envolvimento com a natação master?

Fui convidado para completar um revezamento numa competição local na Califórnia em meados da década de 70. Na ocasião quebramos um recorde nacional. Meu retorno à natação tinha acontecido de forma não intencional. Enquanto corria na pista de atletismo de Stanford senti que havia fraturado a perna pela segunda vez. Logo após chamar a ambulância, vem um advogado pedindo que assinasse um papel isentando a universidade de qualquer responsabilidade no acidente. Isso antes da chegada do socorro! A partir dai comecei a praticar natação com regularidade.

Quais foram os momentos marcantes no master?

A primeira competição sem dúvida, como mencionei, mas houve uma competição em Boca Raton, na Flórida, para a qual cheguei direto de um voo noturno, sem poder descansar. A prova era de 1500, mas o que me deixava apreensivo era a falta de um relógio que pudesse me dar referência. Com isso comecei a dar 3 ou 4 braçadas de costas para poder me situar, antes das viradas para olhar o tempo. Apesar do cansaço e da mudança de estilo acabei vencendo.

O memorável não foi a prova em si, mas o fato de um artigo ter sido escrito por um técnico que, ao observar minhas manobras, argumentou que a capacidade pulmonar diminuía com a idade e que “Aldo tinha desenvolvido uma técnica inovadora para melhorar a respiração nas viradas”. Obviamente não era o caso.

Fale um pouco sobre a sua relação com a natação e os recordes.

Após começar a treinar com regularidade, decidi em um dado momento que estabeleceria 80 recordes ao alcançar os 80 anos.  Consegui 83 marcas a nível nacional e internacional. Um dos feitos dos quais tenho maior orgulho foi ter um recorde que durou mais de 10 anos. Ao todo são 42 recordes mundiais. Meus eventos favoritos são os 200 peito e as provas de 200 medley.

Aos 95 anos continuo nadando três vezes por semana, embora não tenha podido fazê-lo nos últimos dois meses por problemas de saúde. Mas a verdade é que detesto nadar. Diferente da corrida, em que se pode apreciar a paisagem, a natação é um esporte monótono. Por isso destaco dois pontos importantes que sempre me motivaram a treinar: o aspecto social e as competições. Sem o master não conseguiria me dedicar à natação.

18 comentários em “Um mestre entre os masters

  1. rcordani
    7 de novembro de 2013

    Excelente Sidney! 42 recordes mundiais, o sujeito é um prodígio! Realmente mereceu o post do Epichurus, parabéns Aldo.

    E podemos pré-anunciar que acho que o Munhoz acaba de obter um novo ídolo!

    E seja bem-vindo Sidney.

    • Sidney N
      7 de novembro de 2013

      Valeu Renato! Sem dúvida existem histórias como a do Aldo que merecem ser divulgadas. Como o primeiro recorde dele foi aos 65, fica o exemplo e a inspiração para nós PEBAs mortais.

      E pode ter certeza de que o Munhoz não está sozinho 🙂 Abraços!

  2. Rodrigo M. Munhoz
    7 de novembro de 2013

    Fantástica a história do Professor Aldo! Pelo que fez, começou e testemunhou, com certeza daria um filme (ou três filmes…) interessante (s). Já tinha ouvido falar dele quando da indicação ao Hall da Fama Masters – acho que a Maria Lenk foi também indicada por lá, mas não tinha muita idéia da trajetória deste grande personagem. O que achei mais engraçado foi ele dizer que “detesta nadar”… Imagina se adorasse nadar o que não teria feito?!
    Com certeza, o Renato está certo e ele passa a figurar entre os ícones “Masters” e um exemplo de que o objetivo epichuriano pode ser não apenas alcançado, mas também ultrapassado por larga margem. Mas ele deve ser também um ídolo pro Renato, pois: a. Como ele, tem nos 200 peito sua prova favorita b. Tem um ranking militar supeiror ao de general: “Brigadeiro – do – Ar” c. Gosta de competir.

    Parabéns ao Professor Emeritus Aldo e tudo de bom! Espero nos cruzarmos em alguma piscina por aí!

    Valeu pelo texto, Sidney! Abraços.

    • Fernando Cunha Magalhães
      7 de novembro de 2013

      Caro Munhoz, reconheço minhas virtudes e limitações.
      Sr. Aldo é sem dúvida um exemplo a ser seguido, mas superá-lo?
      Pra mim não vai dar!
      É muita realização pra um homem só, e eu só tenho mais 50 anos até chegar na idade dele.

      • Sidney N
        7 de novembro de 2013

        Com certeza Esmaga, a maior das realizações talvez seja chegar perto dos 100 com tanta vitalidade. Taí um objetivo que todos devemos almejar, até para chegar bem naquele reveza dos 320+ no meio do caminho.

    • Sidney N
      7 de novembro de 2013

      Legal Munhoz! Também achei engraçado ele falar que não gostava de nadar. Mas acho que isso acontece com mais frequência do que imaginamos. Também acho difícil ir para a piscina com regularidade sem ter uma forte fonte motivação como encontrar os amigos ou competição em vista.

      Já temos membros suficientes para abrir um fã-clube!

      Abraços

  3. Renata Leão
    7 de novembro de 2013

    Que bacana!! Nunca imaginei que tivéssemos uma pessoa tão especial e ao mesmo tempo tão perto. Parabéns pelo texto e mais ainda pela valiosa informação!!

    • Sidney N
      7 de novembro de 2013

      Obrigado Renata! Também fiquei surpreso quando soube da história pela primeira vez. Não conversa por telefone com o professor Aldo o que mais me impressionou foi a sua modéstia, mais uma grande qualidade de uma pessoal tão especial. Abraços

  4. Fernando Cunha Magalhães
    7 de novembro de 2013

    Excelente Sidney!
    Obrigado pelo texto.

    Sr. Aldo, que trajetória espetacular!
    Tudo que aconteceu no master é apenas parte da cereja do bolo.
    Receba minha sincera e profunda admiração.

    Um grande abraço para o Sidney e para o Sr. Aldo.

    • Sidney N
      7 de novembro de 2013

      Obrigado Esmaga! Sou eu quem fica agradecido e honrado com o convite para colaborar com o Epichurus.

      O professor Aldo foi muito generoso em compartilhar com a gente um pouco da sua trajetória. Ao falar sobre a natação, ele demonstrou tanto ou mais entusiasmo quanto ao comentar sobre outras realizações acadêmicas e profissionais. Isso me fez pensar que uma das razões para ter uma vida tão produtiva é sempre estar se reinventando e encontrar motivação naquilo que buscamos.

      Um grande abraço!

  5. Lelo Menezes
    8 de novembro de 2013

    Excelente o texto Sidney. Eu estava curioso pra saber do sr. Aldo desde o seu primeiro post. Que história de vida sensacional! Me identifiquei com a parte de não gostar de nadar. Hoje em dia compartilho o sentimento, mas de um jeito ou de outro tentarei dar umas braçadas esse ano de 2014.

    abraço

  6. Sidney N
    8 de novembro de 2013

    Muito brigado Lelo, E quanto a nadar, para mim o mais difícil atualmente é chegar à piscina.

    Boa sorte com a resolução para 2014! O Munhoz deve ter ficado emocionado com o comentário e imagino que já esteja contando com a vossa presença nas próximas competições.

    Abraços

    • Rodrigo M. Munhoz
      8 de novembro de 2013

      Fiquei emocionado mesmo! O Lelo seria uma adição importante ao planos do PEBA 320+ … Mas só acredito vendo! 🙂

  7. Beatriz Nantess
    9 de novembro de 2013

    Parabéns ao Epichurus por trazer essa história extraordinária… muito legal resgatar essas memórias da natação brasileira (onde mais eu ficaria sabendo sobre isso do Amapá?) e principalmente do Aldo, cuja história merecia ser contada! Demais!

  8. Sidney N
    9 de novembro de 2013

    Legal Beatriz, ficamos contentes que você tenha gostado. Obrigado pelo elogio e pela força! Abraços

  9. charlaodudo
    13 de novembro de 2013

    Excelentes informações Sidney. O objetivo de 80 recordes aos 80 anos foi sensacional!
    Não imaginava também que o Amapá já teve esse pioneirismo na natação.

  10. Sidney N
    14 de novembro de 2013

    Pois é Carlão, imagina se tivéssemos mais piscinas decentes espalhadas pelo país, quem sabe de onde viriam os talentos? Abraços

  11. Pingback: Até 2014. « Epichurus

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