Uma das regras mais bizarras do NCAA dita, ou pelo menos ditava nos anos 90, que o atleta só era obrigado a treinar durante a temporada do NCAA, que no caso da natação ia de setembro a março. Em outras palavras, se um nadador quisesse ficar em casa, coçando o saco, de abril a agosto, ele poderia e nenhuma sanção lhe seria aplicada. O Maglischo combatia isso com uma palestra anual onde ele deixava claro, claríssimo, que a regra era absurda, mas que ele precisava segui-la e que qualquer nadador que optasse pelas “longas férias” estaria prejudicando demasiadamente a sua própria carreira.
Obviamente que na prática a maioria dos nadadores continuava treinando normalmente nesse período embora um pequeno grupo levasse meio nas coxas. Só me lembro de um cara, Chris Dorfler, PEBA e nadador exclusivo de 50 Livre que realmente não nadava nesses meses. Eu achava o cara louco, mas ele peitava o Maglischo que obviamente não ia com a cara do cidadão.
Eu, como a maioria, treinava pra cassete nesse período intitulado de Spring Training, pelo menos até 1992 visando o Finkel ou qualquer seletiva para seleção brasileira que ocorresse no meio do ano. A partir de 1993 digamos que seria justo tirar o “cassete” da frase. Eu ainda treinava forte, sem faltas, mas aboli o treino de madrugada e treinava somente a tarde, com exceção das sextas-feiras quando treinava somente pela manhã. A explicação dessas sextas “diferentes” está no Kern River.
Em 1991, o nadador dinamarquês Chris Bruggert apareceu no treino dizendo que tinha descido o tal Kern em uma boia de borracha e tinha achado sensacional. O rio intercalava corredeiras bem radicais (nos States chamadas de “rapids”) com longos trechos de calmaria onde a vista das montanhas da Califórnia era sensacional. A aventura levava um pouco mais de três horas e viciamos já na primeira descida. Por muito tempo só descíamos durante o “Spring”, uma ou duas vezes por mês, sempre aos finais de semana. Só que no 2º semestre de 1992, Nels Larsen, outro PEBA velocista, teve a brilhante ideia de montarmos nosso calendário escolar evitando aulas na sexta-feira, reservando a tarde para o Kern. A ideia inicialmente parecia brincadeira, mas acabou inesperadamente tomando forma e no Spring de 1993 uma boa parte do time de natação passou a fazer rafting no Kern toda sexta-feira. Outra novidade foi a inclusão de nadadoras nessas aventuras. O Nels namorava a Nicole, (hoje casados e com dois filhos) e ela difundiu a ideia entre as nadadoras. O resultado final foi bem bacana. Chegamos a descer o Rio com mais de 30 nadadores. Boa parte das meninas entrava no rio num ponto mais abaixo, pois as duas corredeiras mais radicais estavam no início da descida, mas tinha sempre uma ou outra que se aventuravam junto com os homens em todo o percurso.
Só que o Kern tinha seu lado sombrio. Muitas pessoas morriam em suas águas e a placa no caminho sempre nos lembrava do perigo que espreitava. Lógico que duas cervejas depois e já esquecíamos do alerta, mas ele sempre estava na pauta das conversas no rio. Na nossa época a quantidade de mortos estava na casa dos 180. Hoje está em 271. Parece bem assustador agora, mas essa face do Kern alimentava nosso senso aventureiro e destemido. Como nadadores do nosso calibre poderiam morrer afogados? Era impensável na época.
O ritual da aventura era assim: nos encontrávamos por volta das 13h numa loja de conveniência na highway 178, perto de Lake Isabella. A loja era especializada na venda de iscas para pesca, mas vendia cerveja barata e era isso que precisávamos. Os homens compravam a cerveja, sempre Natural Light, apelidada por todos de River Beer. As meninas levavam sanduíches de ovo (uma delícia). O Nels tinha uma boia adaptada para levar a cerveja. Basicamente um cooler grande que se encaixava perfeitamente numa boia e era abastecido com gelo e bebidas. Essa boia ficava amarrada a alguém (trocávamos o condutor da cerveja a cada descida) e esse cara, durante os trechos de calmaria, abastecia todo mundo arremessando as latas ao lado da boia do requisitante. Era o bartender do rio.
Da loja partíamos direto para o Kern, passando pelo bonito lago Isabella e estacionávamos os carros num camping que coincidia com o local de saída do rio. O camping estava sempre vazio e como lá tinha umas mesas de picnic, comíamos os sanduiches de ovo por ali. Era também ali que começava a bebedeira. Depois de alimentados e com a lata semicheia, subíamos uma estrada de terra com alguns carros, deixávamos as meninas no ponto onde elas entravam no rio e subíamos por mais alguns quilômetros até a entrada oficial dos homens. Ali começava a aventura.
Cada um tinha a sua boia personalizada com adesivos e cada boia tinha um apelido. A minha chamava Beaver Tube, em clara homenagem provocativa a Pat Skehan, técnica da equipe feminina de natação, “carinhosamente” apelidada de Beaver pela equipe masculina por ser “dentuça”. As meninas amavam a Pat e sempre me enchiam o saco pra mudar o nome do meu “tube”, mas fui forte até o fim: O Beaver Tube permaneceu comigo até minha última descida no Kern, em Maio de 1993, descida essa que começou como outra qualquer, mas um fato inusitado acabaria de vez com nossas aventuras por lá. A casa caiu pra gente!
Naquela sexta-feira de Maio, treinei normalmente de manhã e por volta do meio dia sai com o Nels e Nicole a caminho do Kern. Seguimos a rotina sem novidades até entrar no rio. A água, como de costume, estava muito gelada. Nessa época não existiam os trajes que combatem o frio. Descíamos o rio de sunga mesmo e os primeiros quinze minutos eram bem sofridos, não só porque no início do percurso o rio era mais estreito e coberto de árvores que escondiam o sol, mas principalmente porque a principal e mais violenta corredeira ficava a cinco minutos da entrada e com um pouco de sorte saíamos ilesos, mas encharcados, embora não foram poucas as vezes que a corredeira nos derrubava na gelada água e saíamos não apenas tremendo de frio, mas também esfolados pelas topadas nas pedras.
A segunda corredeira, coisa de 20 minutos depois da primeira, não era tão violenta, mas era a mais perigosa, pois era curva. Basicamente tínhamos que circundar uma ilha no centro do rio e a correnteza te empurrava para a margem que tinha muitos galhos pontiagudos e se você não conseguisse manobrar seu “tube” e evitar a região, a chance de a boia furar era enorme. Ninguém levava boia reserva e se a sua furasse ali era sinônimo do fim da aventura. O cara descia pela estrada até os carros e ficava umas duas horas esperando. Era o pesadelo de todos pois não era tão raro acontecer e por isso sempre rolava uma comemoração no final dessa segunda corredeira quando todas as boias saiam ilesas. Ali também se iniciava o período de maior calmaria de todos, praticamente uma hora descendo sem grandes corredeiras. Era ali que as meninas entravam no rio e ali também o trabalho do bartender se intensificava. Era hora de bater papo, tomar cerveja e apreciar a beleza natural do cenário.
A terceira corredeira era a mais bacana porque tinha poucas pedras fora d’água e a descida era bem gostosa e sem maiores perigos. Ela desembocava num “piscinão” que por sua vez terminava num canyon onde o visual era espetacular, o mais bonito do percurso. O canyon terminava em um vale onde tinha, do lado esquerda da margem, um camping abandonado. Digo abandonado porque tinha umas mesas e bancos, mas nunca vimos ninguém, nem nenhuma barraca, mas também nunca parávamos pra investigar. Aliás, uma das particularidades das nossas aventuras no Kern era que nunca parávamos na borda. Eram 3 horas de rio mesmo.
Nessa descida em particular fiquei um pouco pra trás durante a passagem pelo canyon, batendo um papo com a Heather Bowl, uma nadadora que era fresquíssima embora bem divertida. Era sua primeira descida no rio e só foi porque perdeu uma aposta para outra nadadora. Quando fizemos a última curva e avistamos o tal camping abandonado, notamos que todos os nadadores, cerca de uns 25, estavam todos na margem do rio. Achei estranho e me preocupei que tivesse acontecido algo com a Brigitte, uma belga que meses antes havia feito uma cirurgia no cérebro que lhe forçou a abandonar a natação. Era sua primeira “aventura” depois da cirurgia. Ao chegar mais perto notei que tinha uma equipe de reportagem na beira do rio aparentemente entrevistando a galera. Notei que a câmera tinha o adesivo do canal ABC. A entrevista rolou mais ou menos assim:
Repórter: “Vocês sabiam que muitas pessoas morrem no Kern?”
Algum nadador: “Sim sabemos, mas somos nadadores da CSUB (California State University, Bakersfield) e todos sabemos nadar muito bem”
Reporter: “Ok, mas a principal causa de morte é o afogamento, principalmente quando a pessoa está embriagada…”
Silêncio….
Reporter: “Bom, eu estou vendo uma boia cheia de cerveja ali e muitos de vocês estão com latinhas de cerveja na mão. Vocês acham isso uma atitude responsável, principalmente vindo de atletas? ”
Mais silêncio…
Foi então que a Brigitte, de um jeito bem espontâneo, levantou uma latinha de Pepsi e disse “Eu tô bebendo Pepsi! ” Todos caíram na gargalhada, inclusive a repórter. A entrevista acabou em seguida e voltamos a descer o rio sem qualquer incidente…. Até então eu não sabia, mas aquele seria meu último rafting no Kern.
No mesmo dia veio a bomba. No telejornal da noite, canal 23 (basicamente uma versão do Jornal Nacional local) saiu a reportagem e nela destruíram a imagem da equipe de natação de Bakersfield, nos chamando de irresponsáveis, péssimos exemplos para os jovens, etc. Os telefones começaram a tocar. Recebi ligação de uns dez amigos, horrorizados, perguntando se eu havia visto a reportagem. Eu não havia aparecido nas imagens, ou melhor, não apareceu meu rosto, embora o Beaver Tube e meu pé estivessem bem nítidos. Independente do possível anonimato, eu estava lá e provavelmente seria inútil negar presença. Será que eu ia perder a bolsa ou será que poderia acontecer coisa pior: expulsão da equipe! O Maglischo ia dar um chilique na segunda-feira e o Maglischo de mau humor não era flor que se cheirasse.
No sábado decidi ir ao cinema pra dar uma relaxada (me lembro do trailer de Jurassic Park que estrearia no mês seguinte) e quando voltei pra casa havia uma mensagem na secretária eletrônica do Chris Perier, um dos capitães da equipe e com certeza o cara mais Caxias que conheci na vida, dizendo mais ou menos assim “Se vocês estavam na reportagem do rio, o Ernie (Maglischio) solicitou sua presença no escritório dele uma hora antes do treino de segunda-feira. A presença é obrigatória”. Fodeu, pensei!
Passei um dos piores domingos da minha carreira de nadador, sofrendo por antecedência pelas possíveis consequências do dia seguinte. Os americanos levam muito a sério essa coisa do politicamente correto, do exemplo que atletas precisam dar para a comunidade, que em troca doa muito dinheiro para as universidades. Eu previa que as consequências seriam duríssimas!
Segunda-feira cheguei uma hora mais cedo na piscina. Como combinado ia me dirigindo ao escritório do Maglischo, mas percebi que os nadadores que saíram na reportagem estavam sentados na arquibancada, somente os homens. Nenhuma das meninas estava ali. Sentei com eles e aguardei. O clima era pesado, mas ali estavam David Huston, Petr Kladiva, Mike Holland (que era capitão junto com o Perier), Nolan Shiffrin e outras “estrelas” do time. Me caiu a ficha que se fossem expulsos junto comigo o time praticamente acabaria. Isso me deu um certo consolo. Nem o Maglischo seria tão louco, mas a real possibilidade de perder a bolsa não me saia da cabeça.
Maglischo chegou balançando a cabeça, mas rindo. Bom sinal, mas suas primeiras palavras foram duras “You guys can’t be that stupid! ” Os primeiros minutos do esporro foram até meio fortes, embora eu esperasse uma carnificina. O resto foi light, bem light na verdade. Conhecendo o Maglischo achei estranhíssimo, mas o alívio foi tanto que não pensei mais sobre o assunto. Nenhuma punição foi aplicada. Ele chamou os capitães (Perier, Holland e Gleen) para uma conversa no particular para bolar uma estratégia de “damage control” e acabaram decidindo por um swim-a-thon onde o time de natação nadaria 48 horas seguidas, sem parar, num revezamento de 30 minutos por atleta com o intuito de pedir desculpas pra comunidade que em troca doaria alimentos não perecíveis para assistir o desafio/tortura com tudo doado para instituições de caridade. O revezamento começou as 08h do sábado seguinte e terminou as 08h de segunda-feira. Praticamente ninguém veio assistir, pelo menos não quando eu estava na piscina. No final achei o swim-a-thon mais divertido do que torturante.
Dias depois o Maglischo soltou a verdadeira bomba que chacoalhou Bakersfield. Anunciou, na mesma arquibancada do esporro do Kern, sua transferência para a Arizona State University e foi aí que entendi porque o esporro foi brando: a cabeça dele já estava em outra equipe. Ele me fez o convite para ir com ele. Aceitei! Meus dias em Bakersfield chegavam ao fim, mas meus três anos por lá foram sem dúvida os melhores que tive nos Estados Unidos. Nunca participei de uma equipe tão unida e tão centrada em um objetivo único: O título do NCAA. Tenho muitas saudades da minha época em Bakersfield, dos amigos (alguns revi em 2012 em San Francisco, inclusive o Nels e a Nicole), das viagens competindo pela Califórnia, em San Diego, Berkeley, Santa Barbara e Los Angeles, mas principalmente de fazer parte de uma comunidade centrada na natação (principal esporte da universidade e orgulho da cidade), algo que não tive no Arizona. Um dia escrevo melhor sobre isso, mas foi uma experiência única.
E óbvio sinto muita falta das aventuras no Kern River e tenho muita vontade, muita vontade mesmo, de voltar lá e descer o rio novamente, nem que seja pra entrar onde entravam as meninas evitando as duas grandes corredeiras que talvez a idade não me permita mais enfrentar. Quem sabe convenço algum escritor do Epichurus, afinal a aventura daria um sensacional texto epichuriano, só que dessa vez trocaria meu Beaver Tube por um modelito mais moderno, o Tube Mulher-Sapiens ou quem sabe o Mandioca’s Tube, em homenagem sarcástica e provocativa a outra “dama” que não carece de maiores explicações…
Boa, Lelo!
Eu curto esses relatos que me fazem lembrar de nossas proprias aventuras… ainda que acabem nos lembrando tambem de algumas frias em que entramos. Importantes aprendizados! Nesse seu caso, um aprendizado de media training poderia ter sido bom antes do incidente (ou “como ser noticia sem se arrepender no dia seguinte) he he he…
BTW> acho que nenhuma equipe de natacao mais ou menos boa do NCAA levava a tal regra de off season a serio ou deixava os nadadores em break por tanto tempo… Nem no Missouri isso acontecia 🙂
Abrtz,
Munhoz
Boa Munhoz! Esse negócio de media training nem existia na nossa época, mas mesmo que existisse acho que a lata tava tão cheia que não ia valer de nada. O consolo pra mim foi que não caiu sobre minhas costas a “dedurada” pra repórter que eramos nadadores da CSUB. Quem falou foi o David Huston, finalista de Olympic Trials nos 200m Peito.
Quanto a regra do NCAA, realmente quase ninguém levava a sério, mas o ponto é que o NCAA é uma instituição com regras arcaicas e longe da realidade do esporte. Tanto que hoje o NCAA já não é a potencia que era na nossa época, década de 90, pois continua insistindo que o nadador tem que ser amador e hoje isso é impensável para as grandes estrelas. Alias, na nossa época isso já começou timidamente, com a Summer Sanders sendo a 1a a abandonar o NCAA em troca de grana. Uma pena pois era uma competição sensacional e pra grande maioria dos nadadores americanos (e sei que isso parece heresia) era o NCAA o sonho de carreira e não as Olimpíadas!
abs
Ótimo post! Abraço
Valeu Chicão.
abs
Muito legal Lelo, e lembro o sr que no ano passado o sr recusou uma trip no Kern com a minha pessoa.
Quanto ao “mau exemplo”, o curioso é que vocês estavam quietos fazendo o que queriam sem dar publicidade a nada, quem deu a notícia à comunidade e consequentemente o “mau exemplo” foi a TV!
Mas está fechado, diga a hora e local que eu pego um pneu e descemos o rio!
Calma lá, kkkkk! Não é que recusei. Simplesmente não tinha com ir. Não é todo mundo que consegue ir pra Califórnia num piscar de olhos. Mas um dia volto e aviso! Quem sabe no aniversário de 10 anos do Epichurus vamos todos juntos!
Quanto ao mau exemplo, realmente a repórter exagerou no tom, mas tudo pelo “furo de reportagem”. Foi uma reportagem feia e principalmente desnecessária, mas fazer o que né… Pior que a repórter foi quem autorizou a matéria de ir ao ar.
Muito bacana a história Lelo!
Sempre disse que essas são as melhores e mais importantes lembranças dos tempos de atleta, principalmente os amigos.
Abraço.
Boa Julinho. É por aí mesmo. São essas que ficam na memória, mais que os resultados e medalhas.
Abs