No meio da década de 80, as vezes recebíamos uma competição do Juvenil ou Adulto na piscina da Luso de Bauru. Nessas ocasiões, a turma do Infantil, sempre virava equipe de cronometragem. Imagino que a falta de gente da FAP em Bauru, poucos estudantes de Educação Física aliados com nossa disponibilidade e até vontade de ajudar, facilitavam muito o recrutamento. Logo após o aquecimento, o Sr. Angelo Delicato – pai do Pier e do Lelê – distribuía os cronômetros Omega e instruía todos a dar-lhes corda ali mesmo
Cronômetro do Baixo – “novo”
. Já sabíamos como anotar os tempos: Minutos, segundos e décimos nas fichas de papel mimeografado, que conhecíamos de nossas próprias competições. Que grande responsabilidade para moleques como nós! Acho que não fazem isso hoje em dia, certo? Pois deveriam! Tudo bem que assim que possível começávamos a brincar de quem conseguia “marcar um décimo”, enquanto as provas não começavam. Pancadas secas nos botões do cronógrafo não deviam fazer bem para os mecanismos de precisão suíços, por isso tentávamos ser discretos. Até porque ninguém queria tomar bronca do árbitro geral – frequentemente o pai de alguém da turma ou de um dos nossos veteranos que estavam na água se esfalfando para chegar em algum índice – que seria “medido” por nossas mãos.
Acho que esta é minha memória mais antiga sobre a importância do tempo. Venho pensando e lendo mais sobre tempo ultimamente, mas essa memória aflorou mais forte quando um antigo técnico e amigo de Bauru, hoje em Ourinhos – o Edson “Baixinho” Luiz de Lima, mandou uma foto de seu cronômetro Seiko de mais de 40 anos num grupo de WhatsApp.
Cronômetro do Baixo – “novo”
Na minha memória, não demorou muito para os cronômetros evoluírem para uns modelos digitais gordos, com números alaranjados. Então apareceram os modelos Cassio, com memória “lap” e marcação de centésimos, e muito da magia se perdeu para mim. Já não “brincava” mais de cronometrar competições quando chegaram as placas eletrônicas com suas peras de marcação e software de controle e displays. O que me marcou mesmo foram aquelas “cebolas” prateadas e seus cliques metálicos. Atuando mais como protagonista nas competições, comecei a dar um pouco mais de importância aos meus próprios tempos, apesar de nunca memorizar os centésimos (influência dos cronômetros de corda? acho que não). Na minha prova favorita, 100 peito, os primeiros vinte segundos de melhora foram memoráveis, do 1´29”7 no meu primeiro campeonato paulista, ao 1´09”7 foi tudo relativamente fácil, em uns 3 anos de muita diversão principalmente. Talvez os melhores dias de minha vida, como uma turma de amigos sensacionais, motivados centralmente pelas mesmas coisas. Obviamente, a coisa complicou em seguida e foi uma luta de mais de 2 anos contra os próximos 3 segundinhos apenas… E depois disso, pior: Nada de melhoras por mais uns 5 anos, ainda que minha vida tenha continuado a orbitar bastante ao redor do tema temporal. Contudo, como se vê, muito antes de parar de nadar, perdi a briga contra o tempo que me definia no esporte. Dolorido, mas nada raro na vida de qualquer nadador em qualquer época. Acho que fiz tudo que podia, mas confesso que as vezes tenho uma sensação a la Menezes e fico em dúvida.
Algumas ideias que discutem a natureza do tempo tratam um pouco disso. Os fatalistas, por exemplo, dizem que o que quer que vá acontecer no futuro, já é inevitável. Sob esta luz, aquilo que aconteceu no passado, foi a simples consequência inescapável dos eventos passados anteriores. Até faz sentido do ponto de vista de treino, dedicação, preparo mental antes e durante a prova, contribuindo com o resultado final. O problema é que isso está baseado na tese que sempre há sempre uma “proposta” válida do que vai acontecer no futuro, toda outra sendo falsa. Os oponentes diretos da teoria do fatalismo, indicam que há diferentes futuros resultados possíveis, baseados justamente em decisões ou caminhos diferentes tomados em diferentes momentos do tempo, o que levaria a infinitas possibilidades de futuro. Acho que o que começa com uma discussão semântica, desemboca na tese do “futuro aberto”. Pessoalmente, vejo mais plausível acreditar no caminho “certo e errado” como subordinados ao instante em que ocorrem, na direção de formar o futuro. Mas isso não oferece muito conforto, já que é virtualmente impossível saber a priori o caminho (ótimo ou não) para levar ao resultado desejado. Por exemplo: Aquele treino constante e forte, que parecia o único caminho para o sucesso, pode facilmente se tornar over training, desgaste orgânico ou desmotivação, enquanto pequenas digressões ou imprevistos podem as vezes ajudar a aliviar a carga psicológica de um nadador dedicado.
Nessa época dominávamos o tempo nas piscinas… 1984, com Andreghetto, Fabrício, Glauco, Pier e Sidão
No que mais a filosofia pode ajudar? Depende do que você considera ajuda. Alguns filósofos nos oferecem a hipótese de que tempo nem existe, o que poderia facilitar a minimizar nossa ansiedade sobre seu passar. Na época de Kant (fins do século XVIII) foi proposto que espaço e tempo eram entidades ou sensações aprendidas para auxiliar na nossa própria compreensão sensorial do mundo. Essa abordagem, apesar de transcendental em conceito, pois indicaria que o tempo dependeria da nossa percepção para “existir”, seria também real já que notávamos sua passagem efetiva. Sendo assim, será que a passagem do tempo seria diferente para cada nadador, criando realidades distintas para uma mesma prova? Pode ser, mas a percepção externa de observadores deveria equalizar isso. Ou não.
Já no começo do século XX, um filósofo chamado McTaggart propôs uma tese em que simplesmente nega a existência do tempo como algo real. Simplificando, para ele o tempo seria uma ilusão, já que um mesmo evento é sempre presente, passado e futuro, e quando contraposto a outros instantes ordenados sem a referência intuitiva de “antes e depois”, geraria uma contradição. Segundo ele e outros filósofos da mesma linha, a ordem do tempo é apenas algo aparente, uma vez que nenhum instante – como uma prova qualquer de 100 peito, por exemplo – pode ser passado e presente ao mesmo tempo, apesar de ser esta nossa percepção eventual. De qualquer maneira, gosto de pensar nisso quando lembro de como certas temporadas e eventos passaram rápido e ao mesmo tempo foram inesquecíveis, enquanto outras custaram a passar na época e me deixaram poucas memórias. Quero acreditar que perceber o tempo e suas nuances deve ser parecido com enxergar cores. Eu, que sou daltônico, certamente não vejo os verdes, marrons e vermelhos como os “normais”, mas ainda assim, não há como saber como uma outra pessoa os perceba. Lembrando por fim, que as leis fundamentais da física e seus fenômenos, aparentemente nem sequer dependem de um tempo unidirecional, apesar de nossa percepção de eventos, memória de passado e desconhecimento do futuro, parecerem indicar o contrário. Mas essa parte ajuda mais na criação de livros de ficção científica – que o Renato tanto odeia.
Por fim, acho que a riqueza da discussão filosófica suaviza (ou pelo menos disfarça) a dureza do tempo na forma implacável de performance, mas uma coisa é certa: Não possuímos o tempo. Se aquele seu melhor tempo, marcado em algum campeonato realmente existiu, já não está mais disponível e não foi mais seu que qualquer outro instante ou decisão da sua vida passada, presente ou futura. Assim como não existe mais o tempo que usei para escrever este post.
Devo me sentir reconfortado com isso? Não sei, mas fico feliz se você tiver usado seu tempo limitado na Terra para ler até aqui. Espero que não tenha se arrependido, até porque isso não iria adiantar em nada. Como agradecimento, deixo um trecho de pensamento sobre o tempo e a sensação que devemos fazer algo a respeito da percepção de sua passagem e as mudanças que pode causar. Foi escrito em 1964 pelo do ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2016, Bob Dylan, mas está muito atual no Brasil de hoje em dia, e leva até o que parece um recado especial para a galera atual na CBDA:
“Come gather around people
Wherever you roam
And admit that the waters
Around you have grown
And accept it that soon
You´ll be drenched to the bone
And if your breath to you is worth saving
Then you better start swimming or you´ll sink like a stone
For the times they are a-changing”
The Times They are A-Changin´
Bob Dylan
Boa Munhoz, sabe que eu tenho uma passagem similar? (pelo menos no tocante ao cronômetro).
Uma vez, irritado com as minhas lentas viradas, o Pancho me tirou da água, mostrou o cronômetro de ponteiro dele, heuer com uma cordinha grossa azul, que aliás para ter maior precisão dava uma volta em 30s, portanto o ponteiro voava! Aí ele mostrou o ponteiro voando tic tac tic tac e disse “Renato, tá vendo como o tempo passa depressa? E você ainda vai ficar um ano para dar a virada de peito?”
Nunca me esqueci dessa cena, e como eu continuei lento, talvez a ânsia de virar rápido e compensar minha falta de aptidão natural tenha causado muitas desclassificações…
Acho que meu comentário não está à altura e nem no espírito do seu post, mas de qualquer forma, o cronômetro era parecido!
Valeu, Renato!
Acho que seu comentário foi perfeitamente em linha com o saudosismo do meu texto. Bom saber que você lembrava do cronometro do Pancho (também um instrumento suíço) e que isso te marcou de uma forma diferente.
Em outra nota, até agora o Bob Dylan não confirmou se vai aceitar ou não o Nobel de literatura. Ainda bem que ninguém reclama mais do meu delay faístico bauruiba… quem está com pressa, certo?
Abratz!
Bacana o texto Munhoz! Eu me lembro bem dos cronômetros de ponteiro e quando moleque sonhava em ter um só meu, embora diferente de você, sempre me fascinou o eletrônico, uma das razões que eu adorava nadar no Júlio Delamare era por causa do gigante placar.
Quando fui treinar nos EUA, uma das memórias mais saudosas que tenho era quando fazíamos tomadas de tempo e o Maglischo ligava o placar eletrônico. Eu achava aquilo sensacional!
É! Bons tempos aqueles onde os prazeres eram simples assim, mas como Bob bem disse “the times, they are a-changing”
Obrigado, Lelo!
Bem lembrada essa: Outro ícone da marcação de tempo da minha (nossa aparentemente) infância foi o placar do Julio Delamare. Era muito legal ver nosso nome naquele monstrengo! Lembro de algumas vezes pedir para alguém tirar foto de quando aparecesse meu nome. Mas essas fotos nunca ficavam boas…
Espero que venham mais historias do tambem iconico Maglischo no futuro, ok?
Abrtz!
Rodrigo,
eu me lembro de cronometrar competições na Luso, era divertido e algumas vezes também fiz parte da equipe de cronometragem, mas o mais importante além de conseguir o melhor tempo no cronômetro era passar mais um dia entre amigos e ver como o pessoal do Juvenil “voava” na piscina !!!!
Quanto ao tempo, até hoje ele me persegue, me encanta brigar contra o relógio, fazer uma viagem, saber a hora que vou sair, hora que tenho que chegar ( sempre com responsabilidade e sem correr riscos na estrada) com parciais no meio, na corrida também, alias hoje perdi para o relógio mais uma vez, mas diferentemente da época da natação hoje não me frusta mais perder para o relógio pois hoje o levo como mera diversão.
abraços a vc e família.
Grande Piffer!
Bons tempos aqueles na Luso!
Perder para o relógio é uma constante na minha casa e não sei se isso me “encanta” muito não… Mas com certeza a maior pressão de tempo de hoje em dia não se compara com o que sentia na época da natação.
Abraços!