“Em Moscou eu me senti como uma criança que teve seu natal roubado pelo Grinch”. (Steve Lundquist). Como o leitor atento já sabe, na famosa fábula do Dr. Seuss, Grinch rouba o Natal das crianças mas depois, ao tomar conhecimento do sentido da festa, sensibilizado, o devolve.
O boicote americano a Moscou foi particularmente doloroso para aqueles nadadores que fizeram nas seletivas olímpicas de 1980 um tempo melhor do que o campeão olímpico. Esse foi precisamente o caso de Steve Lundquist, que nos 100 peito fez 1:02.88 nos USA olympic trials 1980, enquanto o ouro olímpico ficou com o inglês Duncan Goodhew (1:03.34).
A tristeza e raiva eram imensas, mas quem sabe ainda daria para reparar a injustiça olímpica? Steve ainda era jovem e teria 23 anos em Los Angeles. Talvez o sonho olímpico não houvesse morrido no Afeganistão, só adiado. Aí, nos quatro anos entre uma olimpíada e outra Lundquist tratou de fazer a sua parte: ganhou dois ouros no mundial de longa no Equador (1982) e estabeleceu nesse período quatro recordes mundiais nos 100m Peito, sendo o último deles no pan-americano em Caracas (1983), 1:02.28 (uma época em que ainda se batiam recordes mundiais no Pan).
1984
E chegou o ano olímpico, mas não obstante ser o campeão e recordista mundial, a vaga olímpica ainda tinha que ser conquistada na piscina. Para Lundquist, passar pela seletiva americana seria uma tarefa relativamente fácil, afinal, classificavam-se dois, e fora John Moffet, compatriota que havia sido bronze no mundial do Equador, ninguém nadava para menos de 1:03.
John Who? Por sua vez, John Moffet, que era três anos mais novo, não tinha a menor intenção de reparar a injustiça cósmica cometida contra Lundquist, afinal, ele não tinha nada a ver com o boicote, e, do alto de seus 19 anos, vivia o próprio sonho olímpico.
Os USA olympic trials 1984 foram em Indianápolis e ocorreram como de praxe cerca de um mês antes das olimpíadas. Os 100m peito foram no dia 25 de junho, e logo de manhã Steve Lundquist nadou forte (1:02.51), garantindo a raia 4 para a final. De tarde, ele faria ainda melhor que seu próprio recorde mundial (1:02.16) e se classificaria para os Jogos, mas teria o desprazer de testemunhar a ascensão implacável do adversário: John Moffet meteu 1:02.13 e estabeleceu novo recorde mundial, classificando-se em primeiro lugar.
U.S. Olympic trials 1984. A foto vai para Lundquist, mas o World Record e a primeira vaga é de Moffet.
Faltava pouco mais de um mês para os jogos olímpicos, e, de coadjuvante, John Moffet passou a ser a mais nova mania americana. Haveria espaço para uma virada por parte de Lundquist, três anos mais velho do que Moffet? Será que o tempo havia passado, e Steve Lundquist seria mais uma vítima da história olímpica?
Quatro dias antes dos jogos o jornal Los Angeles Times daria a Moffet a capa do suplemento olímpico, com a manchete “Perfect swimmer in perfect Body”. Diz o texto: “Ninguém pode ser tão bonito assim, com o corpo tão bem moldado, inteligente, talentoso, cordial, um homem acima dos outros.” Exagero? Moffet prova que é cordial e simpaticamente se defende, dizendo: “Não é tão simples assim. As coisas podem dar errado para qualquer um. Eles fazem soar como se tudo ocorresse do meu jeitinho e sempre desse tudo certo para mim. Na verdade não é bem assim.”
Quer dizer que as coisas podem dar errado para qualquer um, John? Pois é. Menos de uma semana depois, essas palavras não poderiam ter sido mais cruelmente reais!
(Uma observação importante é que o melhor americano dos 100m peito tinha uma quase garantida medalha de ouro nos 4×100 4 estilos, pois em olimpíadas eles NUNCA perdem essa prova. Portanto, o duelo Lundquist x Moffet valia não apenas uma, mas DUAS medalhas de ouro olímpicas.)
Los Angeles, olimpíadas de 1984. Os 100m peito foram no dia 29 de julho, e logo de manhã o então queridinho da seleção americana John Moffet resolveu deixar claro quem é que mandava na prova, nadou na última série raia 4 e meteu logo o recorde olímpico com 1:02.16, apenas três centésimos pior do que o recorde mundial dele mesmo. Já Lundquist não parecia estar com essa bola toda, ficou apenas com o quinto tempo, 1:03.55. Moffet classificou-se para a final na raia 4, e Steve na raia 2.
(Soubemos depois que) momentos antes da final curiosamente John Moffet vai até Steve Lundquist e confidencia que sua perna não está boa, e que, caso tudo não corra bem com ele, que Steve vá lá e garanta o ouro para os Estados Unidos. Repare a ironia da situação: o cara da RAIA 4 diz para o cara da RAIA 2 para este ir lá e pegar o ouro para os EUA. E aí Moffet se apresenta com cara de dor e uma bandagem na perna para a prova mais importante de sua vida: “Soube que estava ferrado no aquecimento para a final. Eu já não tinha pernas!”.
E chegou o grande momento que Steve Lundquist esperava há pelo menos quatro anos, a chance de reparar uma injustiça histórica. Tendo escondido o jogo pela manhã, e fortalecido pela contusão de seu maior adversário, ele desponta pela raia 2, abre meio corpo já na filipina e dispara rumo ao ouro com estonteante recorde mundial. 1:01.65! Tarefa para poucos e bons, Steve Lundquist faz a prova da sua vida na hora certa: a final olímpica. (veja abaixo o filme da prova).
Do céu ao inferno. John Moffet sente muito a contusão na virilha (que depois viemos a saber havia acontecido há duas semanas e tinha reaparecido nos segundos 50m da eliminatória) e obtém um decepcionante quinto lugar com 1:03.29. Fizesse o tempo da manhã, e Moffet conseguiria ao menos o bronze olímpico. “Dizer que eu estou terrivelmente desapontado não exprime o que sinto. Estou simplesmente paralisado.”
A reportagem do LATimes abaixo conta o drama com maiores detalhes.
(N.doA. em sua curta carreira, Moffet ainda bateria o recorde mundial do revezamento 4×100 medley em 1985, mas nem se classificou para Seul e portanto nunca mais chegou perto de um pódium olímpico.)
O mesmo jornal que exaltou Moffet quatro dias antes dos jogos agora centra o foco das câmeras em Lundquist, e a foto de capa do jornal mostra o comovente abraço do vencedor no vencido.
Do inferno ao céu. Como sempre, tristeza para uns, júbilo para outros. Vejam no filme abaixo Lundquist no pódium: é seguro afirmar que ele nunca mais teve a oportunidade de repetir essa alegria eufórica em sua vida. Ouro olímpico com recorde mundial, após quatro longos anos de espera e angústia.
O sorriso de Steve impressiona, são cenas que só o esporte pode proporcionar. Nesse dia, Lundquist se sentiu como uma criança que, após ter o seu Natal roubado por Grinch, recebeu-o de volta.
Que grande equívoco histórico a decisão das grandes potencias boicotarem as Olimpíadas por conta da política da Guerra Fria.
Eu lembro bem desta prova, assisti ao vivo pela TV e foi espetacular.
Excelente mote para um post. Achei interessante um jovem de 23 anos fazer referencia a fábula para dar a medida do seu sentimento. Algo bem inusitado e pertinente.
Sobre a disputa, foi pena o Moffet ter se machucado. Revendo a prova, imagino a perspectiva dos atletas das raias 3 e 6, achando que estavam a um passo do pódio e na água verem o Steve e o Victor mais de um corpo a frente.
Sensacional a vibração do Lundquist. Esse tipo de reação de alguns campeões valorizam as conquistas de todos os que vencem.
Uma pena mesmo a contusão do Moffet. Eu creio que se ele fez 1:02.16 com a perna ruim durante toda a volta, e sem forçar ao máximo, nadar na casa do 1:01 não era nenhuma anormalidade para ele, o ouro seria disputado palmo a palmo. E, se ele por acaso ficasse com a prata, ao menos teria um metal em sua parede.
Outra coisa:
Lembro que na época havia um pôster da Speedo, dos 8 atletas voando do bloco de partida em direção ao mergulho, as mãos dos 8 alinhadas e os corpos de 7 alinhados.
O do Lundquist estava numa inclinação bem maior.
Uma interpretação física indicava que a maior energia potencial acumulada naquele momento preciso, seria transformada em cinética na descendente e resultaria em significativa vantagem já na filipina.
A foto inspirou vários atletas inclusive meu parceiraço – Luiz Alfredo Mader – a buscar aquela técnica, incansavelmente. Infelizmente – sem jamais chegar perto do mesmo desempenho.
esta saída para cima era realmente excepcional, mas difícil de acertar…
Concordo com o Lelo, Lundquist foi um herói da nossa geração na MdP.
LAM falhou miseravelmente em alcançar a técnica de saída do Lundquist, como podemos ver na raia 7 desta final.
Excelente o post. O Steve Lundquist foi meu primeiro “idolo” na natação. Com certeza um dos maiores nadadores de 100m peito da história. O Maglischo dizia que o Lundquist tinha as melhores viradas da história da natação. Não é a toa que seus recordes de NCAA (em jardas onde a virada tem mais importancia) foram considerados por muitos anos, imbativeis. O de 200 peito eu acompanhei quando o Barrowman bateu. Já o de 100 peito, ainda na época que eu nadei NCAA (inicio dos anos 90), o recorde do Lundquist continuava lá, firme e forte! Não sei quem bateu!
Impressionante a saída. Não é trivial você sair em uma final olímpica e abrir meio corpo dos outros sete!
Nós estávamos em LA na ocasião, e assistimos 1 dia de eliminatórias de natação (ingressos esgotados, e super caros!). Porém, não faço a menor ideia se foi nesse dia… Mas me lembro bem dos jornais Los Angeles Times que meu pai comprou todos os dias, mandou encadernar ao chegar no Brasil, e deu recentemente ao Renato. Belo texto!
Sabe que eu não me lembro de onde assistimos essa final, mas acho que foi na casa de LA.
As eliminatórias que assistimos ao vivo incluíram os 200C masc (RO do Rick Carey), os 100m L masc e os 400 Livre da Tifany Cohen (go-Tifany-go, gritava a mãe dela durante toda a prova – de tarde ela levou o ouro).
Esse “livro” dos jornais LA Times da época são um tesouro… E essa história do Lundquist vs Moffet é inesquecível para quem era nadador na época e, em especial para os nadadores de peito como eu. Meus colegas americanos contam essa história como um drama épico de patriotismo e raça …eu vejo principalmente a “fome” do Lunk, que soube aproveitar como poucos uma oportunidade de obter um lugar entre os grandes atletas olímpicos… Valeu por lembrar dessa história Renato!
O “livro” é uma compilação de todos os cadernos de esportes do LAT durante os jogos. Um único exemplar de ANTES dos jogos foi guardado, esse de “4 days to games” por causa da história do John Moffet. Na época pré-internet, dava uma aflição de não ter onde pesquisar tempos e resultados, daí a gente guardar e encadernar. Hoje, aquele trambolho fica na sala provocando a ira da mulher, ao menos podemos oxigená-lo por aqui, não?
Essas histórias são existem em futebol (existem?). Acho que é por isso que gosto tanto de outros esportes. Tenho esperança de ver a Fabiana Murer brilhar em 2016, depois do que aconteceu em Londres…. adorei queimar a língua com o Thiago Pereira, depois de Atenas, de Pequim, finalmente em Londres, e outras várias superações depois de decepções.
Mas tem outra coisa: Essa prova do vídeo não existe mais. Acabou!
Eles nadaram “clássico”. Peito é o que se nada hoje!!!!!!!
E adorei o texto.
Futebol também tem seus momentos épicos, veja o caso do Ronaldo Fenômeno por exemplo, mas o esporte olímpico é ímpar em situações desse tipo. Tanto para o bem quanto para o mal.
Aposto que o John Moffet hoje em dia DETESTA falar sobre aquela época e assistir natação nas olimpíadas…
Ah, e realmente, Aécio, o peito olímpico de 1984 não tem NADA a ver com o estilo de hoje.
Vale lembrar, já que sou cinéfilo, que o Steve Lundquist tentou depois a vida como “astro” de Hollywood e participou da clássica serie “O Ataque dos Tomates Assassinos” fazendo o papel, merecedor de Oscar, do ajudante abobado do cientista maluco.
Putz, o Lunk é PEBA em Hollywood!
Sempre aproveito para fazer pipoca durante as provas de peito nas Olimpíadas, mas nesse ano essa prova chamou a atenção, pois o Moffet estava detonando e parecia que finalmente os PEBAS do peito iam baixar de 1:01 nos 100m, mas o cara se machucou e não foi dessa vez.
Não lembrava da travada do Lundquist nessa prova. Se tivesse mais uns dois metros eu acho que o Victor Davis atropelaria ele.
Lembro de ter torcido para o Lundquist nessa prova.
Charlão, confessa para a gente, o sr. não perde as provas nobres (de peito) por nada, não é mesmo?
Grande post. Lundquist (the “Animal”) nadou com o nosso Ricardo Prado na SMU. Que equipe, hein !!!!
Eu tive o prazer de nadar contra ele no Pan de 83 (Caracas). Fui quinto, e ele ganhou os 200 !!!
Outro “monstro” dessa final que voce mostra é o canadense Victor Davis, que ficou em segundo nos 100, mas ganhou os 200 com recorde mundial. Victor era uma pessoa inquieta, e arrumava confusão fácil. O trágico fim dele (foi morto em uma briga de bar no Canada alguns poucos anos após essa olimpíada) virou até filme que foi exibido nas TVs do canadá e EUA.
Parabéns pelo post.
Um abraço.
Obrigado Mavi.
No Pan de 83 você empatou com o Chicão, né? Deve ter faltado pouco para você conseguir ir nos 200P para LA.
E sobre o Moffet, ele nunca mais apareceu por aí?
É, empatei co o Chico. Quanto a minha não ida para LA foi uma decisão política. Na época tinha um índice, mas eles (CBN – “velho” Dinard), levava quem eles quisessem, e depois do PAN 83 eu falei “poucas e boas” sobre as condições de treino e sobre a falta de organização da Confederação, e ele não me levou.
Quanto ao John Moffet, eu fiz a mesma pergunta alguns meses atrás para o meu ex-companheiro de U of Alabama Glen Mills, e ele também não sabe nada sobre o paradeiro dele. Sumiu…
Um abraço
uma participação minha tardia….
Também assisti essa prova pela televisão, e lembro que na época achei o SL muito forte!
Lembro que meu técnico na época – Ricardo Moura – contava que tinha sido a primeira prova do dia (se não me engano), e que o estádio quase veio abaixo quando a prova foi ganha. Achava engraçado ele dizer que o americano respeita e aplaude outros nadadores e ganhadores, mas com os nadadores americanos, e em casa, eles iam a loucura….. E vem o SL numa raia do canto e ganha a prova! loucura total.
Lembro também que fiquei impressionado com as trÊs últimas braçadas dele antes da chegada: foram sem respirar – pá, pá, pá, e batida forte! Lembro que fiquei pensando como o cara fez aquilo no finalzinho, quando já deveria estar morrendo….
Podicrê, Ricardo.
Quem lembra bem dessa final sabe que o SL não era barbada, ninguém tinha certeza de sua performance (talvez apenas ele mesmo, talvez nem ele). Hoje em dia o sujeito que não tem boa memória pensa que aquela era a prova típica que todo mundo sabia que ia dar Lundquist, mas ocorria exatamente o oposto, as pessoas pensavam é que ia dar Moffet!
Grande abraço
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